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'Censores defendem uma sociedade que não existe'

Professora da ECA/USP e pesquisadora fala sobre a importância transgressora da arte, o papel de resistência das redes sociais e os valores imaginários defendidos pelos censores


'Censores defendem uma sociedade que não existe'

“Nossa cultura censória é a mesma do passado", afirma Maria Cristina Costa. Imagem: Reprodução

Por Luciano Velleda
Para a Rede Brasil Atual 

Primeiro foi a exposição "Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", no Santander Cultural, em Porto Alegre. Na sequência um delegado decidiu apreender o quadro Pedofilia, exposto no Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande. Quase ao mesmo tempo, um juiz de Jundiaí (SP) proibiu a apresentação da peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, que tinha uma atriz transexual no papel de Jesus Cristo. Mais recentemente foi a vez do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo sofrer com a denúncia de pedofilia após uma menina, acompanhada da mãe, tocar nos pés e mãos de um homem nu durante performance artística.

Impulsionada por uma campanha iniciada pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e outros segmentos conservadores da sociedade, a sequência de ataques às artes chamou a atenção do país no mês de setembro. Um comportamento que não chega a ser novidade para Maria Cristina Costa, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e coordenadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP (Obcom).

“Nossa cultura censória é a mesma do passado. Os recursos são outros, mas os motivos são os mesmos. E os motivos que mais vencem qualquer resistência à veiculação de uma obra são o conteúdo político, de denúncia e crítica, e as questões de moralidade e bons costumes, além da religião”, explica Maria Cristina, enfatizando que, no caso da religião, é sempre a católica, “porque se fosse o candomblé ninguém estava ligando para a travesti interpretar um pai de santo”.

Desde o ano 2000 até junho desse ano, o Obcom abrigou o Arquivo Miroel Silveira, com mais de seis mil processos de censura prévia do teatro de São Paulo, sendo fonte para mais de 50 teses de doutorado e dissertações de mestrado, além do projeto Censura em Cena, também coordenado por Maria Cristina Costa.  

Reconhecida como importante pesquisadora sobre liberdade de expressão, a professora da USP pondera que os modos tradicionais de censura não existem mais no Brasil, apesar de terem sido substituídos por outros, como a classificação indicativa, a “censura togada” e os mecanismos de financiamento das artes.

“Sem liberdade de expressão, a cultura não amadurece. É preciso que essas obras circulem para que o público melhore seu gosto, seja mais exigente, reflita e aprenda que nem tudo é lazer e entretenimento. E também para que esses autores saibam se estão fazendo coisas boas ou não. Eles não têm que ser julgados do ponto de vista moral ou religioso, eles têm que ser julgados como quem produz simbolicamente, se o que estão fazendo é bom, tem coerência, elucida a compreensão da realidade, é isso que essas pessoas precisam ser cobradas.”

Qual a relação da censura que havia na ditadura e as recentes polêmicas envolvendo manifestações artísticas?

A censura, como existia antigamente, não existe mais. Aquela censura clássica, estatal, feita por um órgão público e principalmente fazendo a censura prévia. Mas existem outros recursos censórios que vieram para substituir essa censura oficial. Um exemplo é a classificação indicativa, que é feita por funcionários públicos que não são especialistas no assunto, sem ouvir a sociedade e a decisão vem de cima pra baixo. Ainda é resquício da censura.

Nós também temos as leis de incentivo, que são uma forma de censura. Como no caso do Santander, você acaba estabelecendo uma relação entre o marketing da empresa e a obra que está em jogo, então certas obras jamais serão publicadas e veiculadas por meio de leis de incentivo, porque ninguém vai ter interesse numa obra que fala mal do capitalismo ou das desigualdades sociais. E há ainda os processos judiciais, que a gente chama de censura togada, quando processos dão aos juízes o direito de tirar de circulação uma obra para defender a privacidade de alguém, sem saber se aquela obra vai realmente atingir a privacidade.

É o caso do juiz que proibiu a peça de teatro com a atriz transexual interpretando Jesus?

Exatamente. Como é que você sabe se uma peça vai realmente criar problemas para as pessoas de uma determinada religião se você não deixar a peça estrear? Nós temos muitas leis no Brasil que protegem os possíveis malefícios de uma obra de arte, seja ela qual for, seja a defesa da verdade, a defesa da imagem pública das pessoas ou para defender das calúnias. Então nós não precisamos de uma outra lei, mas precisamos que a obra chegue ao público. Senão, como você vai avaliar que uma obra prejudica uma população? Só se ela for vista e ouvida. A censura prévia é um absurdo, um abuso, dentro de um país que tem a legislação que o Brasil tem.

Atriz transexual
Renata Carvalho, atriz que interpreta Jesus Cristo na peça censurada em Jundiaí. Imagem: Divulgação

É possível avaliar o que está por trás dessas manifestações contra a arte?

Nossa cultura censória é a mesma do passado. Os recursos são outros, mas os motivos são os mesmos. E os motivos que mais vencem qualquer resistência à veiculação de uma obra são a subversão, ou seja, o conteúdo político, de denúncia e crítica, que são considerados subversão, e as questões de moralidade e bons costumes, além da religião. Mas a religião católica, porque se fosse o candomblé ninguém estava ligando para a travesti interpretar um pai de santo.

A Igreja Católica é quem inventou a censura no mundo, institucionalizou a censura por meio da Inquisição. A cultura censória é a mesma e somos um povo muito autoritário. Tivemos censura antes de ter teatro, antes de ter biblioteca, antes de ter universidade, editora, imprensa, antes de tudo isso nós já tínhamos censura. Quando alguém diz que quer dar liberdade de expressão, é para quem pensa igual a ele, porque ninguém quer dar liberdade de expressão pra quem pensa diferente. Essa é a cultura brasileira fomentada ao longo de 500 anos.

E como todo esse histórico se relaciona com o atual momento?

Nós estamos numa era de grande conservadorismo e retrocesso, não só no Brasil, mas no mundo. Como vimos agora na Espanha, onde uma província não pode nem fazer um plebiscito e ouvir a opinião da população, ou com o Donald Trump nos Estados Unidos. Infelizmente estamos vendo um obscurantismo muito grande na sociedade. Mas ainda bem que tem as redes sociais pra combater, porque tudo isso está sendo veiculado. A performance no MAM imediatamente começou a circular na internet. A biografia do Roberto Carlos, quando foi proibida, logo ficou disponível na internet. Temos hoje recursos pra combater, debater e denunciar a censura.

Por outro lado, a internet age nos dois sentidos, tanto pra enfrentar a censura quanto para combater a obra.

Acontece que os que combatem sempre tiveram espaço, em todas as mídias. De alguma forma, os conservadores sempre estiveram no poder. Só que agora aqueles que resistem também têm acesso a um meio de mobilização, denúncia e ativismo, que antes não tinham. Hoje o que torna mais inócua essa reação obscurantista é o fato das redes sociais serem um meio de disseminação de conteúdo, você não consegue parar, é viral. Fica até estúpido tentar impedir. Essa exposição de Porto Alegre pouca gente teria tomado conhecimento, mas com tudo o que fizeram, teve uma repercussão incrível.

A peça de teatro proibida em Jundiaí, na semana seguinte, se apresentou com casa cheia.

Pois é, e isso graças as redes sociais, senão pouca gente ficaria sabendo que uma peça foi proibida. Hoje as pessoas têm que mudar a estratégia de ação porque as redes sociais são uma potência.

Qual o papel da arte na sociedade?

A arte é transgressora. Não é possível que uma obra de arte não mexa com a interpretação oficial da realidade. Ela só é arte porque de alguma forma aponta para algo que não é o óbvio. Por que se ri de uma comédia? Porque aquilo que o ator está falando, é uma coisa que está dentro do espectador e que talvez ele não tivesse coragem de falar ou pensar, mas na medida em que é o outro que está no palco, eu posso rir e me tornar cúmplice daquilo. A arte é o meio privilegiado de debate, discussão, crítica, de denúncia, e é também o espaço de contravenção porque toca no público de uma maneira muito mais forte e inapagável. A arte acaba sendo quem põe o dedo na ferida.

Por que essa intolerância com a arte persiste numa parcela da população?

Porque estamos vivendo períodos de retrocesso e esses grupos não estavam com coragem de se manifestar, então predominava um pensamento mais progressista. E estamos vendo isso em todos os campos. Tirar a filosofia e a sociologia do ensino médio tem o mesmo caráter repressor, assim como obrigar as pessoas a voltar a estudar religião católica, porque ninguém vai pôr, em aula de religião no ensino público, a umbanda. Toda a ideia democrática e da laicidade da sociedade... a reação contra as ideias progressistas e democráticas está saindo pra fora. As pessoas estão tendo coragem de se manifestar.

Como interpretar os valores defendidos por essa parcela conservadora da sociedade?

A censura e a liberdade de expressão estão se relacionando com outro ideário político. Os partidos de centro-direita são a favor do moralismo, da repressão, da mulher em casa. A realidade e a sociedade que os grupos censórios defendem, não existe. Que família é essa que estão defendendo numa sociedade em que 35% das famílias são comandadas por mulheres? Essa sociedade que justifica os atos censórios não existe ou só existe na cabeça dos censores. O tema de gênero, por exemplo: claro que quando nascemos, homem é homem e mulher é mulher, mas a sexualidade humana não é biológica, basta dizer que temos relações fora do período de reprodução, o que faz com que tenhamos um comportamento sexual completamente diferente das outras espécies. Os censores defendem uma sociedade que não existe.

Em todos esses casos recentes havia a questão da pedofilia e a proteção da criança...

Mas quais crianças estamos defendendo? As nossas crianças nas favelas veem cadáveres na rua, as nossas crianças não têm saneamento básico, moram em casas que não têm divisória entre cômodos. Que crianças são essas que estamos defendendo e existem na cabeça dos censores? É uma criança da elite, protegida pelos pais, atrás de muros que a separam da rua e da realidade que não se quer ver, e que ao invés de discutir como mudar a sociedade, se prefere não ver como a sociedade é. “A família”, “a criança”, “os bons costumes”, são fantasias que eles gostariam que estivessem na sociedade, são valores que eles defendem, mas que não existem. Nossa sociedade não é esse modelo idealizado que os censores usam pra justificar seus atos censórios.

Nesse cenário, qual o papel da universidade como espaço de reflexão e formação?

É o papel de defender o pensamento progressista e dar cada vez mais argumento, não só aos alunos, mas a todas as instituições que nos procuram, a resistir. Acontece que nessa época obscurantista, até o pensamento científico e a atividade acadêmica estão desvalorizadas. Hoje, se fizer uma enquete na sociedade perguntando se deve dar mais dinheiro pra universidade, vai se achar que não. Como se a universidade não estivesse fazendo nenhum serviço no campo das ideias e do pensamento científico pra elucidação da realidade. Infelizmente estamos muito precarizados e a precarização da universidade e da educação tem tudo a ver com um programa obscurantista, autoritário e conservador. Há uma invisibilidade da nossa produção e do que fazemos. O Núcleo de Pesquisa da Violência da USP, por exemplo, dá assessoria na Argentina, no Chile, mas não no Brasil. Então o nosso trabalho é de resistência.

Esse momento de retrocesso pode ser um estímulo para os artistas se expressarem com mais força e vigor?

Não, a censura não estimula nada. O teatro brasileiro era de vanguarda internacional e a censura foi tão ferrenha na ditadura que acabou com o teatro vigoroso que tínhamos. Claro que existem excelentes trabalhos, mas o que vigora hoje são os musicais e as comédias. Aquele teatro engajado do Ariano Suassuna, Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, nós não temos mais. A censura foi forte porque a arte era vigorosa. A censura assassina e nos enfraquece diante da competição estrangeira, por isso hoje nossas peças são importadas. A censura não incentiva nada, ela mata, e ainda cria a autocensura, que é péssimo.

Imagina hoje uma pessoa que vai levar um trabalho para o Santander, que tipo de trabalho vai levar? Vai levar uma peça que discuta o aborto? Nunca. Então a censura ainda infantiliza o público, torna a obra de arte um entretenimento que deixa de ser um lugar de reflexão. A censura não tem nenhuma vantagem. Mesmo aquilo que é ruim, a gente precisa ver, ouvir e, se for o caso, não gostar, desligar, trocar de canal. É preciso deixar a população ver. Porque o que é bom, encanta; o que não é, desgosta. Então não tem nada melhor para apurar o gosto da população do que oferecer o máximo possível, e ainda se der a baixo custo e junto às escolas. Não tem outra solução senão a educação.

Há algum problema em haver instituições culturais atreladas a bancos e empresas?

Não vejo problema nenhum das empresas privadas financiarem arte e cultura. O que não pode é o Estado se eximir da parte dele. Por exemplo: o teatro hoje que é patrocinado é com atores globais, uma Regina Duarte sempre terá patrocínio, mas se você pegar um grupo como a Companhia do Latão, que é um teatro brechteriano, de esquerda, experimental, estes nunca vão ter financiamento. 

O Ministério da Cultura e o Estado deveriam dar espaço para essas pessoas cuja produção não representa nenhum valor para as empresas privadas. Acho que nada funciona tão bem no Brasil como o Sesc, que é privado. Então é também um problema de gestão e políticas públicas. O Sesc sempre se baseou em profissionais de reconhecida experiência pra fazer curadoria e, a partir daquele momento, confia na curadoria. O mesmo com o Itaú Cultural, onde trabalhei por cinco anos e chamávamos curadores que eram críticos de arte reconhecidos, não é um funcionário corporativo que vai decidir os rumos da arte. O Estado deve dar espaço para aquela produção que ainda não representa um interesse para a instituição privada, porque cada um pensa no seu público, e a empresa não é o Estado. Que o teatro vivo pegue a Regina Duarte porque vai chamar público, acho compreensível, o que não é possível é outra artista ou grupo de teatro da periferia, que tenha uma outra proposta, não ter nunca um palco pra se apresentar. 

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