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Hoje, Mercosul é mais político que econômico, diz ministro uruguaio

Leia a entrevista com Eduardo Bonomi, ministro do Interior do Uruguai


Hoje, Mercosul é mais político que econômico, diz ministro uruguaio

Entrevista publicada originalmente na página do Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica 

A mudança na orientação política dos governos de Brasil e Argentina, os maiores sócios do Mercosul em termos comerciais, impacta não só a região como um todo, como o Uruguai em particular. Hoje, as decisões tomadas pelo bloco são muito mais políticas do que econômicas e afetam o futuro dos países integrantes do bloco, opina o ministro do Interior do Uruguai desde 2010, Eduardo Bonomi em entrevista concedida ao Celag (Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica) e traduzida pelo Instituto Lula.

Dos sócios fundadores do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), este foi o único que não deu um giro conservador e o único que segue crescendo, ainda que em um ritmo mais lento. De acordo com Bonomi, as mudanças políticas e sociais vividas na região no início do século 21 com os governos progressistas da região ocorreram após as fortes crises econômicas vivenciadas pelos países do bloco e isso resultou na eleição dos presidentes Lula (Brasil, 2003), Néstor Kirchner (Argentina, 2003) e Tabaré Vázquez (Uruguai, 2005) que apostaram em uma política de crescimento com distribuição de renda. Hoje, no entanto, Brasil e Argentina seguem o caminho inverso: o mesmo que os levou às fortes crises dos anos 1990 onde “a variável do ajuste é o salário, o gasto social, o desemprego”, comenta o ministro, que também já dirigiu a pasta de Trabalho e Previdência Social entre 2005 e 2009.

Para o político uruguaio, as mudanças verificadas no Mercosul não são positivas e sobre o futuro do bloco e ele diz apostar na ação dos povos, mais do que dos governos.

Confira a íntegra da entrevista:

Em menos de um ano, a situação do Mercosul mudou fruto do triunfo de Macri na Argentina e da destituição de Rousseff no Brasil: qual é, do seu ponto de vista, o atual estado do Mercosul? Como observa as mudanças recentes e que balanço faz do Mercosul?

Eu acredito que é preciso voltar às origens. O Mercosul nasceu como um espaço de livre comércio com a coordenação de quatro governos neoliberais: o de Roberto Lacalle no Uruguai, o de Carlos Menem na Argentina, o de Fernando Collor de Mello no Brasil e o de Andrés Rodrigues no Paraguai. Depois, evoluiu a partir das mudanças nos governos destes três destes países: Argentina Brasil e Uruguai. Durante um certo período também houve uma mudança no governo paraguaio e teve a incorporação da Venezuela. Foi uma mudança no sentindo que esse foi consolidando mais uma coordenação produtiva.

No caso do Uruguai, a maior parte da produção com valor agregado ─ a produção industrial ─ era vendida no Mercosul, enquanto fora do bloco essa coordenação tinha pouco resultado. A oposição no Uruguai opinava que tinha se transformado em um ‘Mercosul político’ e, alguns dirigentes proclamavam que era preciso acabar com ele. Mas o certo é que assim avançamos por anos nos quais para o Uruguai tinha muito resultado a coordenação entre os membros do bloco. E, por sua vez, a atuação como bloco lhe dava a possibilidade de negociar melhores resultados com outros atores fora da região.

Agora se ocorreram duas coisas: o triunfo eleitoral de Macri e a queda de Dilma Rousseff. E a partir daí os novos governos de Argentina e Brasil, junto ao governo do Paraguai, têm outro foco para o bloco. O paradoxo disso é que o Mercosul hoje tem mais características políticas e menos econômicas. Começamos a ver que ocorrem situações como a possibilidade de que o Brasil venda carne aos Estados Unidos e este, em contrapartida, planeja vender trigo ao Brasil. Se isso se concretizar, se o Brasil começar a importar trigo dos Estados Unidos, o Mercosul, que estava pensado como um espaço para favorecer as possibilidades produtivas de cada país, deixará em uma situação muito desfavorável as exportações de carne e trigo da Argentina, um dos grandes celeiros do mundo. Evidentemente, um Mercosul com essas características pode ter mais dificuldades. Mas o Mercosul é isso, a coordenação de distintos governos, e os governos enfrentam as mudanças vindas das eleições. A única maneira de continuar fortalecendo o bloco seria mantendo um rumo, como foi durante algum tempo. Mas aqui houve uma mudança e eu não a vejo como uma mudança positiva.

Diz-se que no Mercosul o Uruguai é um “país dobradiça”[1], o país da contenção entre dois gigantes (Argentina e Brasil), e de fora se vê que o Uruguai tem muito peso ético nas discussões internas sobre diversos assuntos. Neste momento, qual é o papel do Uruguai no Mercosul?

Esse era o papel. Mas, neste momento, para além das intenções políticas dos outros governos, sobretudo de Argentina e Brasil, é difícil dizer qual o papel do Uruguai no Mercosul. O principal contraste é que no caso da Argentina e do Brasil, se trata de governos com sérias dificuldades para sair de seus problemas econômicos e sociais. Nosso país quer uma orientação política diferente e é o único dos três que está crescendo. Diminuiu o ritmo de crescimento, mas segue crescendo. E as previsões são de que seguirá crescendo este ano e o ano que vem. Argentina não parece ir por este caminho. Acaba de informar que aumentou em 32% os índices de pobreza e creio que em 9% os índices de indigência. São 12 milhões de pobres que ascenderam de forma muito intensa nos últimos tempos. Como isso afeta o Uruguai? Bem, eu penso que afeta pelo que eu dizia antes. O Uruguai aumentou suas vendas de produtos industriais, com maior valor agregado, a esses dois países e a influência que pode ter, desde um ponto de vista de ser uma referência política ou ética, é referência a quem, de alguma maneira, respeita esta visão. Não sei se é o que está acontecendo justamente neste momento. O Mercosul precisa de uma discussão profunda novamente, e isso está atrelado ao que acontece em cada país. Neste momento, Argentina e Brasil são países que estão em uma situação pouco estável. No Brasil, os que destituíram Dilma não têm um respaldo visível, mas têm dois anos de governo ainda. Então é preciso ver o que acontece.

Qual considera que será o impacto na região do giro neoconservador adotado em Argentina e Brasil? E como ele poderia afetar o Uruguai?

Quando começou a mudança nos governos neoliberais, no início do século XXI, Argentina, Uruguai e Brasil vínhamos de uma transição após ter passado por fortes crises econômicas e os três — exceto o Brasil em determinado momento —, tentamos resolvê-las da mesma maneira: reduzindo o gasto social, afetando salários, reduzindo as políticas de emprego. Nesses países, a profundidade das crises significou que na eleição seguinte ganharam Lula, Néstor Kirchner e Tabaré Vázquez e mudaram a orientação econômica. O Uruguai, claramente, apostou — seguindo inclusive o que havia começado Lula — pelo desenvolvimento e pelo crescimento com distribuição de renda, pela ideia de crescer distribuindo e distribuir crescendo. E nos três casos se apostou no fortalecimento do mercado interno. Assim fomos saindo da crise. O Uruguai diversificou seu comércio exterior, começou a vender carne a mais de 100 países do mundo e já não depende do Brasil ou Argentina.

Agora os dois governos, o de Macri e o de Temer, voltam à situação de antes do Lula. Voltam à situação em que a variável do ajuste é o salário, o investimento social, empurram para o desemprego. O Uruguai não, segue no que estava. E agora até agora é o único que não caiu. Melhor dizendo, diminuiu, mas segue crescendo. Eu penso que o peso de Brasil e Argentina é tão grande que pode nos afetar. Mas o Uruguai agora não depende, como dependia naquele momento, exclusivamente dos dois. Nosso país vende lácteos, carne, arroz, soja em todo mundo; tem a produção de celulose que Argentina e Brasil compram; tem outra reserva diferente da que tinha em 2001/2002. No entanto, é inegável que o peso de Brasil e Argentina é forte. De todo modo, as previsões não apenas do governo, mas até da oposição estão apontando que o Uruguai seguirá crescendo, não está determinado por Brasil e Argentina.

A região anda por este caminho complexo e diverso também. Não é uma situação simples. Junto a isso, me parece que há no sentimento das pessoas uma depreciação da política. E isso é mais perigoso inclusive do que a situação econômica e social. O problema não são apenas os governos, mas como os povos encaram as políticas e as transformações de fundo.

Com tudo isso que falamos sobre o Mercosul, sobre os as mudanças de governo no Brasil e na Argentina, sobre o giro neoconservador na América Latina, como ver o futuro da região?

Não se pode fazer previsões sobre isso, mas eu acredito que muitas vezes os povos experimentam. Muitas vezes se acredita, sobretudo quando se perde um pouco a perspectiva do passado e do presente, que é possível mudar algumas coisas e manter o resto. Os partidos que estiveram na oposição em outros tempos nunca apresentaram um programa muito claro. Para chegar ao poder, centraram seus discursos políticos na importância da gestão e chegaram a prometer que iam fazer o mesmo, mas melhor. Na última eleição na Argentina eu acho que chegaram a convencer de que a única coisa que ia mudar eram os impostos que eram pagos pelos trabalhadores, e que iam manter o resto das políticas. Nesses meses se viu que mudaram especialmente o que era favorável aos trabalhadores. Então acredito que a consciência muitas vezes se forma pelos golpes do momento sobre a lembrança do que ocorreu. Com a mudança que se produziu espero que se consolide novamente um núcleo que possa fortalecer a memória sobre o que ocorreu. Mas eu não acredito que o futuro venha dos acordos que possam ser feitos com esses governos, mas do que em cada país os povos possam fazer com seus governos, creio essa é a base das mudanças.


[1] Em espanhol, diz-se do partido minoritário que funciona entre outros maiores e, com seu apoio, garante a governabilidade [N.T.]


Leia a entrevista original, em espanhol, na página do Celag .

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