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José Graziano: O repto da fome

José Graziano da Silva, alerta que a fome está aumentando no mundo, tanto em países em conflito, como em nações que passam por crises econômicas


José Graziano: O repto da fome

Entre 2015 e 2016, mais 2,4 milhões de pessoas sofreram com a subnutrição na América Latina e no Caribe. Foto: EBC

Artigo publicado originalmente pelo jornal Valor Econômico

Por José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)*

A fome aumentou no mundo em 2016: cerca de 815 milhões de pessoas foram submetidas a esse flagelo no ano passado, contra 777 milhões em 2015.

A porcentagem de pessoas cronicamente subnutridas no planeta também aumentou: 11% da população mundial sofreu de fome em 2016, o mesmo nível de cinco anos atrás (2012). Isso significa que, no ano passado, uma em nove pessoas no mundo dormia com fome todos os dias.

Esses são os números do relatório de 2017 sobre o “Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo” (SOFI, no acrônimo em inglês), que acaba de ser publicado. O SOFI 2017 é resultado da nova parceria entre a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), que inclui também o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e o Programa Mundial de Alimentos (PMA).

O crescimento da fome no mundo, após dez anos de recuos sucessivos, enseja apreensão e cobra respostas. O fato é que as causas da fome diversificaram-se, o leque dos desequilíbrios alimentares ampliou-se.

A situação deteriorou-se principalmente em partes da África Subsaariana, do Sudeste Asiático e também da Ásia Ocidental, e foi mais notável em áreas submetidas a conflitos armados. Cerca de 60% das pessoas afetadas pela fome atualmente (489 milhões) vivem em países tangidos por disputas sanguinárias. Essa também é a situação de 75% das crianças (total de 155 milhões) que apresentam problema de crescimento em razão de subnutrição.

As consequências são ainda mais graves quando os impactos dos conflitos combinam-se com a ocorrência de eventos naturais extremos, como secas e inundações. Tais eventos são resultado dos efeitos dos fenômenos climáticos “El Niño” e “La Niña” e também da mudança do clima.

De fato, a combinação entre conflitos e secas está por trás da grave crise humanitária no Sudão do Sul, no nordeste da Nigéria, na Somália e no Iêmen, onde 20 milhões transitam no fio da navalha entre o socorro emergencial e a angustiante ameaça de uma recidiva da fome.

Os resultados são o desmonte de seus sistemas agroalimentares e a expulsão maciça de populações rurais em sua dupla tragédia: a fome e o êxodo, ilustrado pela existência de 65 milhões de refugiados e deslocados internos (termo técnico para refugiados que permanecem dentro do próprio país, “internally displaced persons”) no mundo, o dobro de 2010.

A piora da segurança alimentar no mundo foi notada também em países não-submetidos a conflitos armados, como na América Latina, onde cerca de 42,5 milhões de pessoas sofreram de fome em 2016, um aumento de 2,5 milhões de pessoas em relação a 2015.

Tal aumento ocorreu por causa da piora dos índices de subnutrição na América do Sul, onde o número de subnutridos passou de 20,8 milhões em 2015 para 23,7 milhões em 2016. América Central e Caribe, por sua vez, registraram diminuição do número de pessoas atingidas pela fome em 2016 (de 11,6 para 11,3 milhões e de 7,7 para 7,4 milhões, respectivamente).

Tal situação na América do Sul está ligada, sobretudo, à desaceleração econômica, taxas crescentes de desemprego, perda real do valor do salário mínimo e também à deterioração de redes de proteção social. Nesse cenário, poderemos testemunhar em breve o retorno da fome em países onde ela foi erradicada.

E o aumento da fome no mundo não é o único problema nutricional grave que a comunidade internacional tem de enfrentar.

A obesidade e o sobrepeso têm apresentado crescimento em todo o mundo, incluindo em países de baixa renda. Em 2014, mais de 600 milhões de adultos poderiam ser classificados como obesos, cerca de 13% da população adulta mundial. O excesso de peso infantil também está aumentando. No ano passado, 41 milhões de crianças menores de cinco anos apresentavam sobrepeso, um aumento de 5% em relação aos índices de 2005.

Afastar o espectro de uma reversão nutricional mais profunda e abrangente exige agora, mais que nunca, prontidão de recursos e políticas públicas que protejam os mais vulneráveis e impulsionem a retomada do crescimento sustentável, especialmente com relação ao combate à fome.

Avulta desse panorama o baixo nexo das respostas oferecidas pela Ajuda Oficial ao Desenvolvimento, focadas quase que exclusivamente no socorro alimentar de curto prazo. O mundo rico parece ter esquecido que a única solução definitiva para a miséria é o desenvolvimento.

Nessa direção, a FAO, a OMS, o UNICEF, o FIDA e o PMA são unânimes em sublinhar a urgência de uma reordenação política, que combine a assistência humanitária com ações estruturais, sobretudo em benefício das pobres e vulneráveis populações rurais do mundo em desenvolvimento.

Sem um novo salto na cooperação internacional, os reptos da pobreza e da fome tendem a romper os laços de coesão no elos mais frágeis da comunidade global.

Garantir sociedades pacíficas, inclusivas — e sustentáveis — tornou-se o requisito necessário ao cumprimento de Agenda 2030 de erradicação da fome e da miséria no planeta.

O que o repto do infortúnio está dizendo à cooperação internacional é que para que isso aconteça é preciso salvar vidas, mas também os meios de subsistência que assegurem sua autonomia e resiliência diante dos novos ventos que sopram no mundo.

*Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico, em 9 de outubro de 2016.

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