Convidado pelo projeto Iniciativa África, do Instituto Lula, professor Carlos Lopes demonstrou as coincidências entre o continente africano e o Brasil: oportunidade para fortalecer cooperação
30/05/2024 16:05
A agenda e pauta internacionais estão dominadas pela questão do clima. E o Brasil está no protagonismo desse tema na esfera internacional como presidente do G20, após acolher a COP 30 e ao presidir o Brics. Para o professor Carlos Lopes, da Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul e da Sciences Po (Paris), essa é uma oportunidade para fortalecer a cooperação entre o Brasil e o continente africano. Presidente da Fundação Africana do Clima e ex-embaixador da ONU no Brasil, Lopes foi o convidado do projeto Iniciativa África, do Instituto Lula, na noite de sexta-feira (24 de maio).
De forma clara e absolutamente didática, Carlos Lopes apresentou, durante o debate A África Diante dos Desafios Climáticos, as muitas coincidências entre o continente africano e o Brasil. Ambos enfrentam as mesmas dificuldades com a União Europeia, com os negociadores internacionais. Veem os mesmos comentários e as mesmas narrativas sobre suas descobertas de combustíveis fósseis. As mesmas atitudes paternalistas em relação à proteção de suas riquezas naturais. E sofrem com as consequências das mudanças climáticas mesmo sendo credores de emissões de carbono diante de suas capacidades de absorção, no caso do Brasil, a Amazônia, uma das maiores florestas do mundo.
“Temos uma coincidência quase total de objetivos entre África e Brasil. Isso leva a que essas presidências várias do Brasil nos diferentes fóruns internacionais seja uma oportunidade para fortalecer a cooperação entre o Brasil e o continente africano”, avalia o professor. “Acho que há apetite necessário para que isso aconteça. Por isso, trazer a perspectiva africana no debate climático pode ajudar nessa construção.”
Lopes iniciou sua exposição sobre a questão climática começando por uma evidência. “Temos na humanidade progressos enormes, de tirar as pessoas da precariedade, uma história de sucesso a nível planetário”, disse, explicando que apesar de haver ainda muita gente que viva na pobreza, as estatísticas indicam que já não tanto quanto nos séculos e nas décadas anteriores. “Mas temos de admitir que isso foi construído com duas perdas enormes para a humanidade”, destaca.
“A primeira é a sustentabilidade do planeta, um custo enorme no meio ambiental para chegarmos aonde chegamos.” A segunda é a desigualdade muito grande entre as várias partes do planeta. Aquelas que tiveram a capacidade de fornecer recursos naturais acabaram por não ser aquelas que mais se beneficiaram dessa progressão da humanidade. “Podemos dizer que o custo social e o custo ambiental nos interpelam e nos obrigam a fazer uma reflexão sobre se podemos continuar nessa trajetória sem grandes disrupções ou se precisamos de uma grande disrupção.”
Para ele, a forma mais fácil de ver essa equação, do ponto de vista africano, é de dizer que os países ricos, aqueles que se desenvolveram mais, contraíram também, fruto da forma como se desenvolveram, uma dívida carbono. E os países que não se beneficiaram e não contribuíram para a emissão e poluição que assolam o mundo nesse momento, são países com crédito carbono.
“Se tivermos a sensatez de vermos que os países que têm crédito carbono precisam de condições mais favoráveis para sua transição ecológica e energética estaremos mais perto de poder compensar o outro problema que é o da desigualdade social”, afirma.
“Isso é uma forma de dizer que o debate sobre a justiça climática é um debate também sobre desenvolvimento. E é um debate sobre a necessidade de nós não separarmos a luta pela melhoria das condições de vida dos menos favorecidos da luta pela transformação da nossa pegada carbônica.”
Quando tivemos o Acordo de Paris (2015) sobre as mudanças climáticas, lembra o professor, havia objetivos como o de preservar o planeta de aumentos de temperaturas acima de 1.5 graus centígrados. Para tanto, foram colocadas três frentes de batalha. Umas delas, a mitigação ou redução das pegadas de carbono das indústrias e países mais poluentes. “A preocupação com o consumo, a forma de viver hostil dos países ricos.” A segunda frente é a adaptação: cuidar dos países que não contribuíram com as emissões, que não são responsáveis pelo desastre vivido planetariamente, mas que têm sofrido e precisam do olhar para as mudanças climáticas com uma preocupação até maior.
“Muitos deles sofrem crises de desastres naturais provocados pelas mudanças climáticas como a que está a ocorrer no Rio Grande do Sul. E como está acontecendo com esse período de seca absolutamente extraordinária na Amazônia”, exemplifica Lopes. “Temos nesse perímetro tropical, equatoriano, os países que mais sofrem. E eles não são responsáveis na maior parte dos casos pelo planeta estar nas condições em que está e, portanto, precisam de meios de adaptação.” E a terceira frente, uma luta histórica dos países em desenvolvimento que só conseguiu ser reconhecida na COP 27, de dois anos atrás. É a frente de perdas e danos. “Quando você não pode mitigar, não pode adaptar porque as coisas já aconteceram, já são perdas e, portanto, é preciso compensar essas perdas de alguma forma mudando as pessoas no estilo de vida, na localização geográfica. Providenciando água se não tiverem, compensando perda de zonas costeiras etc.”
Em cada uma dessas frentes os africanos têm créditos enormes, afirmou Lopes. “Por exemplo: em termos de mitigação temos, assim como o Brasil, a capacidade de sequestrar carbono mais do que emitir. Ou seja, temos um balanço positivo.”
Quando todos os países querem chegar ao NET Zero (uma espécie de neutralidade carbônica), nossos países já alcançaram isso. Deveriam ser pagos por aqueles países que têm de mitigar. E a forma que isso normalmente é feita é através dos créditos de carbono. “Mas esse é um mercado completamente corrosivo, absolutamente abusado, dominado por intermediários especuladores que acabam por fazer com os créditos carbono dos países africanos aquilo que faziam antes com a dívida soberana. Ou seja, uma exploração desenfreada.”
Em relação à adaptação, os países africanos têm demonstrado uma grande resiliência. “São aqueles que têm as piores condições financeiras do mundo e mesmo assim são a segunda região que mais cresce no mundo em termos econômicos, depois da Ásia”, informou Lopes. “Seria de esperar que a África estivesse completamente no buraco. Mas se virmos a projeção do FMI para 2024, dos 20 países que vão ter maior taxa de crescimento do planeta, dez são africanos. Dos dez primeiros, seis são africanos. Há aqui uma grande resiliência e capacidade de adaptação que não era de se esperar.”
Claro que essa capacidade é distribuída desigualmente e há grandes regiões em crise climática que não conseguem demonstrar essa performance. Para surpresa de muitos, por exemplo, o Níger está projetado a crescer 11% este ano. Ou o Mali, que vai crescer a 6%. “É um paradoxo: os africanos, apesar de todas as dificuldades, em países com uma grande exposição a dificuldades, dentro outras, resultantes do clima, conseguem apesar de tudo crescer. E isso poderia ser mais reconhecido. E não é.”
As avaliações das agências de raiting, por exemplo, consideram que o conjunto da África, com exceção de Botsuana, está em categoria especulativa. “Pagam as taxas de juro mais elevadas do mundo e têm problemas de acesso à liquidez por causa dessa avaliação de risco. O que mostra mais uma vez que essas performances, essas características não contam muito quando a narrativa que prevalece, que é mais forte, é uma narrativa negativa e pessimista sobre o continente.”
Em relação às perdas e danos, a compensação principal seria o acesso dos países africanos ao financiamento climático para poderem fazer as suas transições. “E aqui nós temos um déficit de confiança enorme, porque tudo que tem sido produzido desde o Acordo de Paris, e lá se vão quase 17 anos, estamos todo o tempo a correr atrás das promessas que não são cumpridas”, criticou Lopes. “Isso equivale a um trilhão de dólares. Uma soma colossal que equivale a 1/3 do PIB africano. E que nós já consideramos como impossível de ser assegurada apesar das promessas feitas.”
E isso, para ele, leva a que às várias negociações em andamento das COPs tenham-se transformado em uma espécie de feira de grandes promessas que não vão ser cumpridas. “Perdas e danos é a última operacionalização de um fundo que foi aprovado somente na COP 28, no ano passado, que vamos ver se será cumprido. As esperanças são cada vez menores”, lamentou.
Lopes avalia que é preciso fazer da justiça climática mais que um ponto de honra, um ponto de entrada para mudar as regras de funcionamento de determinadas instituições. “Não em nome de salvar os povos africanos, como se dizia, mas em nome de salvar o planeta”, ressalta.
“Se a África não fizer parte da solução vamos todos sofrer, em nível planetário. Em parte por causa das razões já mencionadas, em parte porque o maior potencial para produção das novas energias, como o hidrogênio verde está na África. Pelo maior potencial insular também, já que boa parte da inovação virá dos oceanos. E dos minérios para transições energéticas e ecológicas que estão na África”, elencou. “Ou seja, tem de ser parte da solução e não mais uma vaga de extrativismo. Chegou a hora de dizemos STOP e de fazer com que a África tenha uma capacidade de estrutura de organização política para que esse tipo de negociações seja bem-sucedido.”
Assista ao debate: