A jornalista e escritora Bianca Santana falou sobre suas pesquisas e a importância da escrita na resistência das mulheres negras no Brasil
17/09/2024 18:09
Com base no conceito sobre a escrita de si das mulheres negras, trabalhado pela filósofa e ativista de direitos humanos Sueli Carneiro, a jornalista Bianca Santana deu início aos seus estudos sobre a luta das mulheres negras. Na noite da última quarta-feira (11), a doutora em Ciência da Informação e mestra em Educação pela Universidade de São relatou a uma plateia seleta suas pesquisas sobre o tema, realizadas no Brasil e em países africanos. O Diálogos sobre a África é parte do projeto Iniciativa África, mantido pelo Instituto Lula desde 2011.
Em sua tese de doutorado, Bianca Santana parte da premissa de que “a escrita de mulheres negras, de formulação estética de sua própria existência e trabalho de memória, possibilita a constituição de subjetividades e de sujeitos coletivos que permitem resistir ao racismo”.
Ela contou que durante suas pesquisas para o doutorado foi se envolvendo com o trabalho de Sueli Carneiro. Naquele momento, aconteceu o assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018, no Rio de Janeiro. “Isso tudo mexeu tanto com as coisas que eu estava pensando que acabei mudando o tema de um livro que eu tinha prometido para a Companhia das Letras para a escrita de uma biografia da Sueli Carneiro. Ousadia enorme”, disse. Para tanto, explicou, precisava estudar o movimento de mulheres negras no Brasil, porque fazia sentido contar a história da vida dessa pessoa entrelaçada com a história de luta coletiva.
Bianca lembrou que o movimento de mulheres no continente africano tem diferenças muito grandes com o movimento de mulheres no Brasil e na América Latina. “E quando a gente fala também em continente africano é quase uma coisa exagerada, que não existe. O colonialismo que inventou desse jeito. Porque a África francófona, com a anglófona, com a lusófona, já tem diferenças enormes nessa África pós-colonial. Sem falar da quantidade de etnias e povos com visões do mundo e culturas muito diferentes. Então não vou me atrever a falar para vocês sobre mulheres do continente africano”, afirmou.
A importante imprensa negra no final do século 19 e primeira metade do século 20 contava com muita participação de mulheres negras. Em 1859, Maria Firmina dos Reis, uma professora do Maranhão, lança um romance chamado ‘Úrsula’. O primeiro publicado por uma mulher negra no Brasil, e que trata da temática racial.
Antes dela, contou Bianca Santana, em 1770, Esperança Garcia, mulher negra escravizada no Piauí, fez uma carta ao governador do estado denunciando a situação de maus tratos que ela e sua comunidade sofriam. A carta foi considerada a primeira petição do Brasil. Em 2017, Esperança foi reconhecida como a primeira advogada do país. “Isso quando nem quem era branco ou proprietário de pessoas escravizadas sabia escrever no Brasil. Então, realmente tem uma importância muito grande esse texto”, explicou Santana.
Apesar de suas pesquisas se atentarem aos textos, Bianca ressalta que a luta das mulheres negras no Brasil existe desde que chegou a primeira pessoa escravizada aqui. “A gente precisa olhar essa luta não só com as lentes de como hoje a gente percebe os movimentos sociais, mas numa lente ampliada sobre o que é a resistência, o que é o enfrentamento”, avaliou. Lembrando, por exemplo, as situações de recusa citadas por Jurema Werneck em seu ‘Livro da Saúde das Mulheres Negras’.
“Elas se recusavam a determinadas ordens e se organizavam politicamente mesmo ali na senzala, no enfrentamento para se recusarem a algo. E isso é sim uma ação de resistência importante”, pontuou a jornalista. “Até mulheres que construíram quilombos, não como esse lugar de preto fugido, mas um espaço de autonomia e liberdade constituído por pessoas negras, mas que recebeu ao longo da história pessoas brancas pobres, pessoas indígenas.”
Bianca frisou, ainda, a importância das irmandades fundadas por mulheres negras, como a da Boa Morte. Ou suas atuações nas lideradas por homens como a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. “Uma possibilidade de organização coletiva para proteção da população negra num cenário muito terrível”, contou, destacando o papel dessas irmandades na aquisição de funerais dignos, cuidado dos doentes, compra da alforria.
Atualmente, a organização negra mais antiga no Brasil é a Sociedade Protetora dos Desvalidos, fundada no século 19 em Salvador (BA) e que tem hoje uma mulher negra como presidenta.
Lembrando novamente a importância da imprensa negra, Bianca citou o ‘Clarim da Alvorada', jornal muito importante em São Paulo, nas décadas de 1920 a 1940, que contava com mulheres negras escrevendo ou como secretarias de redação. “Eunice Cunha publicou uma série de textos de organização.”
Bianca Santana lembrou também de Maria de Lourdes Vale do Nascimento, que foi casada com Abdias do Nascimento, e escreveu no jornal ‘O Quilombo’ sobre a luta das trabalhadoras domésticas no Brasil nas décadas de 1930 a 1940.
“Essa organização vai acontecendo de muitos modos”, afirmou Bianca, rememorando a constituição do primeiro sindicato de trabalhadoras domésticas. “Laudelina Campos de Melo foi muito importante para essa fundação, em Campinas (em 1936), depois em Santos.”
Após a abolição no Brasil, em 1888, não existiu nenhuma política de reparação para essa população negra. “Nas palavras de Sueli Carneiro: vocês estão livres para morrer de fome nas ruas desse país. Não teve educação, não teve distribuição de terra, não teve trabalho remunerado. A possibilidade de ganhar a vida, para as mulheres negras, era o trabalho doméstico. Até o século 20 a maior parte das mulheres negras no Brasil que tinham emprego eram empregadas domésticas. Daí a importância desses sindicatos de trabalhadoras domésticas nessa luta, nessa organização política”, reforçou a pesquisadora.
No período pré-regime militar tem-se a organização da Frente Negra Brasileira, depois a Frente Negra Socialista, que também tinha mulheres atuando. Em 1978, a fundação do Movimento Negro Unificado é muito importante para essa afirmação e é fundamental para como as mulheres atuam. “Principalmente no começo dos anos 1980 essas mulheres negras que atuavam nos partidos políticos, que tinham atuado na luta contra o regime militar, nos movimentos feministas, no movimento negro, elas foram formulando o quanto elas enfrentavam dificuldades específicas em cada um desses movimentos”, lembrou Bianca.
No encontro feminista latino-americano, em Bertioga (1985), tem-se o registro das mulheres negras buscando pautar o racismo, mas sem muito espaço. “As mulheres brancas não querem pautar o racismo e a gente enfrenta racismo. Nossos companheiros homens negros não querem saber de machismo e a gente enfrenta o machismo. E foi se desenhando coletivamente a necessidade de se afirmar o sujeito político mulher negra”, relatou a jornalista.
Em 1987, um novo encontro de mulheres feministas em Garanhuns, o tema racismo entra em pauta, mas as mulheres brancas não aparecem para a conversa.
Assim, em dezembro de 1988, em Valença (RJ), acontece o primeiro encontro nacional de mulheres negras. “E esse encontro é muito importante. Muito do que elas discutem e produzem ali é relevante para a gente ainda hoje e pautou muito da linha do movimento”, contou Bianca.
Depois, em 1992, um encontro de mulheres latino-americanas e caribenhas se propôs a reproduzir esse encontro que aconteceu em 1988. Ali se cria uma rede fundamental. “O último dia do encontro é o 25 de julho e ali elas tiram a necessidade de ter um dia da mulher negra, latino-americana e caribenha. Que vira um marco importante para as mulheres do continente. E quando Luiza Bairros é ministra da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), a presidenta Dilma Rousseff assina que o 25 de julho é o Dia Nacional da Mulher Negra e de Tereza de Benguela que foi uma liderança quilombola”, relembrou. “Hoje, quando a gente olha para a lei 10.639, de 2003, que determina o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, o 25 de julho, depois do 20 de novembro, são datas muito importantes para de fato levantar esses temas, ampliar o debate, pautar a mídia, colocar a marcha na rua e levar reivindicações das mulheres negras.”
Muito mais maduro, hoje esse sujeito político mulher negra está organizado como movimento social e atuando nos demais movimentos. “Eu acho essa uma característica muito interessante e muito bonita desse movimento que trabalha muito perto do movimento feminista, do movimento negro”, considerou Bianca.
Essas mulheres, além de atuarem no debate público, escreverem na imprensa, ocupar universidades, irem constituindo um campo de estudos da temática racial, vão atuando em diferentes frentes. Participam da construção das grandes marchas nacionais do movimento negro, como a de Zumbi dos Palmares. E, por sugestão de Nilma Bentes, militante paraense, a marcha das mulheres negras que reuniu 50 mil em Brasília em 2015. E criou comitês propulsores em todo o Brasil.
Um pouco antes começa a haver uma ampliação do debate público sobre mulheres negras e se começa a falar sobre feminismo negro no Brasil com a popularização da internet. Bianca dá como exemplos o movimento Geledés e seu site, a escritora Djamila Ribeiro, e a popularização de textos de Lélia Gonzaléz, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro.
Ao finalizar sua exposição, Bianca Santana abordou também o “ativismo de rede social”, com a tradução de autoras ou apropriação de pensamentos norte-americanos trazidos para o Brasil que não considera esse histórico brasileiro.
Em 2019, lembrou que quando Angela Davis veio ao Brasil e falou para 18 mil pessoas no Parque do Ibirapuera, a ativista norte-americana questionou por que ela é tão celebrada num país que tem Lélia Gonzaléz.
“Mesmo a ideia de feminismo negro é estranha para muitas mulheres negras no Brasil”, avaliou Bianca. “E vamos tentando contemporizar essas visões.”
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