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Renato Martins analisa “eleições históricas” no Chile


Renato Martins analisa “eleições históricas” no Chile

Foto: Alejandra De Lucca V./Minsa/Fotos Públicas

Por Renato Martins, na revista Teoria e Debate

As eleições desde final de semana (15 e 16 de maio de 2021) para prefeitos, vereadores e governadores, assim como a escolha dos delegados da Convenção encarregada de redigir a nova Constituição chilena, podem ser consideradas históricas. Em 21 de novembro ocorrerão as eleições que elegerão também o presidente, quando o governo de Sebastian Piñera e dos partidos de direita que o apoiam chegarão extremamente enfraquecidos depois dessa derrota acachapante. Para onde vai o Chile a partir de agora é a grande questão colocada pelas urnas – o que certamente terá enormes consequências para o país e o restante da América Latina.

Para a Convenção Constituinte a aliança governista de direita elegeu 37 membros das 155 cadeiras disputadas (24%), enquanto os partidos de esquerda e centro-esquerda ficaram com 53 assentos (34%) e os independentes elegeram 65 representantes (42%), vindos dos mais variados coletivos e agrupamentos que tomaram as ruas em 2019. Não foi menor a derrota dos partidos de direita nas disputas para prefeitos e governadores de regiões – a primeira que acontece no Chile, pois os governadores eram nomeados. Ainda falta apurar todos os votos em algumas localidades, mas já é certa a vitória do Partido Comunista e da Frente Ampla em cidades simbólicas como Santiago e Valparaíso. Nem a fragmentação dos candidatos eleitos, nem a baixa participação da cidadania chegam a ofuscar o significado singular dessas eleições históricas, a mais importante dos últimos 30 anos.

O governo e os partidos de direita que apoiam Sebastian Piñera foram os grandes derrotados. Arrogantes, eles correm o risco de não alcançar o quórum mínimo de um terço dos assentos necessários para influir ou vetar as decisões da maioria, passando a beirar a irrelevância. Ao mesmo tempo, nada garante que o bloco majoritário dos independentes, aliado aos partidos tradicionais de centro-esquerda, forme uma sólida maioria. O país se encontra, portanto, naquela situação em que a velha ordem está em vias de desaparecer e a nova ainda não disse a que veio. De concreto, o que se pode afirmar é que as mobilizações de 2019 trouxeram de volta a incerteza democrática para o centro da cena política. É muito difícil prever em que tudo isso vai dar. O certo é que o regime de amplos consensos em torno do modelo neoliberal implantado pela constituição autoritária de Pinochet ficou definitivamente para trás.

O Chile moderno nasceu dos anos de resistência à ditadura que ficaram marcados, em sua fase final, pela vitória dos partidos de centro-esquerda no plebiscito sucessório de 1988, que foi o último recurso da ditadura para tentar legitimar o regime autoritário e conferir a Pinochet mais oito anos de permanência no poder. A vitória do NO defendido pelos partidos que viriam a governar o Chile de 1990 a 2010 deu origem à moderna etapa da história política chilena, que agora se encerra definitivamente nessas eleições.

A exemplo do que aconteceu há 30 anos, as eleições desse final de semana foram antecedidas por um plebiscito, previsto no Acordo pela Paz Social e a Nova Constituição. Assinado pelos partidos do governo e da oposição – com a exceção do Partido Comunista do Chile (PCCh) e de outras agremiações menores –, o Acordo visou recuperar a iniciativa dos partidos políticos das mãos dos movimentos sociais que tomaram a dianteira dos protestos de rua em 2019. O cerne do Acordo consistia na elaboração de uma nova Constituição, proposta que obteve a aprovação de 80% dos chilenos no chamado “plebiscito de entrada”, de 25 de outubro daquele ano. No mesmo plebiscito os chilenos votaram favoravelmente à convocação de uma convenção paritária e independente para redigir, no prazo de nove meses, prorrogáveis por mais três, a nova Constituição do país. O próximo presidente a ser eleito em novembro de 2021 tomará posse e governará o país a partir de março de 2022 com uma nova Constituição.

O adeus à Constituição autoritária de Pinochet acabou se convertendo na principal reivindicação dos protestos massivos que tomaram conta do país em 2019 e ficaram conhecidos como estallidos sociais. Iniciado por estudantes de classe média ao pular as catracas das estações de metrô como forma de protesto pelo aumento das passagens de trem, o movimento se ampliou para as classes populares e se radicalizou em razão da truculência do governo Piñera, o que levou à morte dezenas de manifestantes e causou ferimentos graves em centenas de outros. O sentimento de indignação que tomou conta do Chile voltou-se contra o governo, mas não poupou os partidos tradicionais, inclusive da esquerda e da centro-esquerda. Os resultados das urnas desse final de semana são uma decorrência daquelas manifestações, e expressam a crise de representação dos partidos tradicionais.

O Chile que emerge dos estallidos sociais é outro país, e as esquerdas têm dificuldade em interpretar a nova situação. Chamei de “progressismo resignado” o progressismo suis generis que chegou ao poder com a redemocratização chilena. Entre 1990 e 2010, o arranjo político entre socialistas moderados e cristãos conservadores nunca deu conta de atender a principal demanda da população chilena, especialmente das classes trabalhadoras, mas também dos aposentados, das mulheres, dos estudantes, dos ambientalistas e dos povos originários no sentido de fazer a superação do modelo herdado da Constituição autoritária de Pinochet, de 1980. Antes de mudá-la substancialmente, as reformas realizadas ao longo desses anos acabaram por legitimá-la.

Enquanto as experiências progressistas dos demais países latino-americanos nasceram do confronto propositivo com a agenda neoliberal, forjando um programa político baseado no desenvolvimento econômico com geração de emprego e renda, na integração regional, na defesa das empresas estatais nos setores estratégicos e do caráter público de serviços de previdência, educação, saúde e seguridade social, o progressismo chileno se resignou em fazer a gestão do neoliberalismo, evitando confrontos abertos que pudessem colocar em risco a democracia. A Concertación manteve intacto o preceito constitucional do estado mínimo e subsidiário, pilar do modelo estabelecido pela Constituição neoliberal, proclive aos interesses do capital nacional e das empresas transnacionais. O castigo veio com os estallidos sociais e os resultados eleitorais.

A fórmula adotada pela Concertación garantiu estabilidade política e crescimento econômico aos chilenos, mas foi incapaz de evitar a concentração de renda, riqueza e patrimônio, o que fez do Chile um dos países mais injustos da América do Sul. Derrotados em 2010 por Sebastián Piñera, os partidos da esquerda moderada tiveram fôlego para regressar ao poder com Michelle Bachelet, em 2014, desta vez com o apoio do Partido Comunista, o que não evitou que fossem novamente derrotados por Piñera em 2018. O revezamento entre os partidos tradicionais pode estar com os dias contados.  O princípio da “folha em branco” estabelecido no Acordo Pela Paz abre a possibilidade de mudanças profundas na organização do Estado, no sistema econômico, na representação política e nos direitos sociais. Mesmo assim, não convém exagerar as expectativas. Futuros avanços vão depender das alianças e da correlação de forças que será construída a partir de agora. Existem regras no Acordo que limitam as mudanças, como o respeito aos acordos internacionais. Temas hipersensíveis como a privatização das águas e a preservação dos bosques naturais podem vir a bater de frente com essas regras.

Ao mesmo tempo, é de se esperar mudanças no regime de propriedade, que hoje não se sujeita a nenhum tipo de responsabilidade social; no caráter subsidiário do Estado, que engessa a possibilidade de realização de políticas públicas em setores econômicos de grande sensibilidade social, como saúde, educação e moradia; na administração do Estado, fortemente concentrada, desde o século 19, nos poderes centrais; no sistema de capitalização das aposentadorias privadas, amplamente contestado pela sociedade; nos direitos das mulheres, dos povos indígenas, dos estudantes, dos trabalhadores e dos sindicatos e associações de classe.

Enfim, um novo ciclo se inicia a partir dessas eleições históricas, que revelam a imensa capacidade de resiliência dos povos latino-americanos ao neoliberalismo. Novos ventos sopram no país do vinho tinto e das empanadas, que certamente verá se abrirem muito brevemente “las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor”.

Renato Martins é professor adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Foi colaborador da Iniciativa América Latina do Instituto Lula.

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