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Gate discute democracia em meio à vigilância


Gate discute democracia em meio à vigilância

Imagem: EFF-Graphics

“Como fica a democracia no capitalismo de plataforma e vigilância”. Está no ar a oitava edição do Boletim Gate, produzido pelo Grupo de Acompanhamento de Temas Estratégicos do Instituto Lula. 

Assinado por Francisco Fonseca, Greiner Costa, Helga Almeida, Rosemary Segurado e Tathiana Chicarino, o documento caracteriza o momento histórico atual, “em que nós nos tornamos a mercadoria”. Os autores ainda analisam o estado da democracia em um cenário de vigilância e controle exercidos por grandes empresas de tecnologia. 

Acesse o Boletim em PDF no ISSUU do Instituto Lula, nossa plataforma de publicação de textos.

Leia abaixo na íntegra:

Como fica a democracia no capitalismo de plataforma e vigilância

Nossos dados estão sendo capturados a cada instante. Tudo o que fazemos, o que acessamos, o que compramos, cada passo que damos, tudo é registrado, guardado e – claro – usado. Com esses dados em mãos, grandes empresas nos ofertam produtos, antecipam nossas vontades e são capazes até de manipular o que pensamos. 

A modulação da opinião – e a consequente modulação de comportamentos, violando garantias individuais, como o acesso à informação ampla e o direito à privacidade – é uma realidade. As consequências são grandes e passam até mesmo pelo controle do que a gente vê ou deixa de ver, sem que saibamos os critérios dessa visualização.

Para entendermos melhor o contexto histórico em que nós nos tornamos a mercadoria - não apenas por nossas características sociodemográficas, mas sobretudo por nossa subjetividade (nossas vontades e nossos comportamentos) - resgatamos aqui dois conceitos importantes: capitalismo de plataforma e de vigilância.

Capitalismo de plataforma

Para começar, plataformas digitais são modelos de negócios que utilizam de “uma arquitetura computacional baseada na conectividade e intercâmbio de dados” (D’ANDRÉA, 2020). O capitalismo de plataforma como um novo modelo de negócios pós-industrial é baseado em ferramentas e tecnologias para coleta e armazenamento de dados, tendo se tornado a principal indústria global nos dias de hoje (SRNICEK, 2017). Alguns de seus mais perversos desdobramentos são a invasão da privacidade e o direcionamento de interesses e manutenção dos indivíduos em bolhas de informação filtradas e direcionadas. 

Derivado daí vemos o surgimento de uma economia de plataforma, que organiza os diferentes mercados na coleta, filtragem e tratamento de nossos dados, sempre objetivando criar soluções algorítmicas que permitam a identificação de padrões de comportamento a fim de influenciar comportamentos sociais. Uma das principais estratégias para conseguir esses dados pessoais em alta escala (SRNICEK, 2017) se dá por nossa presença cotidiana, e porque não extenuante, em plataformas digitais que não são a priori monetizadas (ou seja, pagas pelos usuários) e por isso atraem grandes públicos (ex. Facebook).

Capitalismo de vigilância

De fato, existe hoje uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como matéria-prima gratuita para práticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e venda de comportamento. (ZUBOFF, 2021). A estratégia de grandes empresas de tecnologia baseia-se na mineração e análise de nossas identidades e ações — muitas vezes sem nosso consentimento —, que são então sintetizadas em dados e usadas para prever nosso comportamento futuro. Isso é o que a acadêmica norte-americana Shoshana Zuboff chamou de capitalismo de vigilância.

Ambas as noções se articulam à medida em que a nova economia é baseada no fluxo de dados a partir do monitoramento massivo realizado pelas plataformas nas redes digitais que possibilitam a modelagem de condutas tanto em âmbito econômico (geração de dependência nos países subdesenvolvidos favorecendo a extração de riqueza de nosso país), quanto político.

E a democracia?

As consequências do capitalismo de plataforma e de vigilância na democracia são inúmeras e vão desde influências perversas nas escolhas eleitorais dos indivíduos, até no potencial de participação e organização autônoma de grupos e movimentos sociais. Cria-se um mundo virtual que se torna “real” para milhões de pessoas (a “pós-verdade”).

No nível individual, a modulação tolhe as possibilidades de que o cidadão enxergue o panorama político dentro de suas complexidades e peculiaridades. O indivíduo só tem acesso a uma parte do campo de informações. Isso porque a informação disponibilizada:

1. muitas vezes foi financiada e está ali com objetivos publicitários;

2. é de grande precisão já que se baseia em nossa subjetividade, em nossa história, algo que é viabilizado exatamente pela captura massiva de dados sobre cada um de nós.

Quem não tem, não consegue

O resultado é que quem tem mais dinheiro consegue apresentar suas ideias aos cidadãos e convencê-los através da repetição. Quem não tem, não consegue. O que pode afetar eleições de forma muito problemática. Esse processo nos remete, mas de forma ainda mais sofisticada, à afamada estratégia de propaganda nazista, segundo a qual “uma mentira contada muitas vezes se torna verdade”.

Há ainda, nesse contexto, uma diminuição nas possibilidades de construção de uma democracia mais deliberativa, já que há a emergência de um modelo de antagonismo que corre por fora da democracia (MOUFFE, 2017), dado que a modulação algorítmica pré-escolhe para os indivíduos o conteúdo que verão. O que isola aqueles que pensam diferente e impede a troca de impressões entre pontos de vista distintos.

Monopólio da atenção

Além disso, usa-se cada vez mais técnicas de monopolização da atenção a partir da ativação de sentimentos como raiva, indignação e medo. As consequências possíveis? Isolamento ideológico, antipolítica, discurso de ódio. Esse novo paradigma de comunicação política favorece identificações extremadas e alija uma parte do contingente eleitoral. Além de um possível falseamento de processos eleitorais, há um perigo potencial de solapamento da democracia exatamente pela quebra dos espaços de construção de consensos a partir das diferenças.

O grave problema das modelagens de algoritmos produzidas pelas empresas que controlam as plataformas e os aplicativos de redes sociais é que não só obtêm os dados e desenvolvem modelos psicológicos de vastos contingentes da população. Pior, eles influenciam nossas escolhas políticas. O ponto é, o capitalismo de plataforma e de vigilância faz com que indivíduos percam autonomia. Aprisionados em um aquário, eles têm apenas as escolhas que as plataformas os permitem enxergar.

Há evidências, por exemplo, de que houve associação de algumas plataformas, como o Facebook, à extrema direita, o que impulsionou de forma ainda não mensurada a votação que alçou de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos. 

É importante, portanto, que haja a normatização rígida em relação à extração e uso de dados por empresas a fim de minimizar os efeitos perniciosos dessa nova lógica do capitalismo em relação ao mercado, mas também em relação à política. É preciso que o Estado normatize.

O Brasil e o golpe

Por fim, é preciso destacar que o Brasil encontra-se em meio a esse processo (plataforma e vigilância). O golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, com consequências destruidoras para a democracia no Brasil desde então é expressão dessa intensa, profunda e complexa modulação. A ascensão da extrema direita ao poder a partir de 2018 tem levado a desinformação, a pós-verdade e a vigilância ao limite. Governos e empresas têm se associado para derrogar a democracia e as esquerdas e, para tanto, se utilizam da tecnologia da informação de forma inédita.

Assinam este Boletim:

Francisco César Pinto da Fonseca - Cientista social, Mestre em ciência política/Unicamp, Doutor em História Social/USP. Professor de Ciência Política na FGV/Eaesp e PUC-SP. 

Greiner T. M. Costa - Engenheiro, Doutor em Política Científica e Tecnológica/Unicamp).

Helga Almeida - Cientista política, Doutora em Ciência Política/UFMG e professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco /Univasf).

Rosemary Segurado - Cientista política, professora do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP, editora da Revista Aurora da PUCSP, coordenadora do curso de Mídia, Política e Sociedade da FESPSP.

Tathiana Chicarino - Cientista Política. Doutora e Mestra pela PUC-SP. Professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Pesquisadora do NEAMP PUC-SP (Núcleo de Estudo em Arte, Mídia e Política) Pesquisadora do Grupo de Pesquisa “Comunicação e Sociedade do Espetáculo” da Cásper Líbero.

Algumas referências bibliográficas se você quiser saber mais:

D’ANDRÉA, Carlos Frederico de Brito. Pesquisando plataformas online: conceitos e métodos. 2020.

MOUFFE, Chantal. Sobre o político. WMF Martins Fontes, 2020.

SRNICEK, Nick. Platform capitalism. John Wiley & Sons, 2017.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Intrínseca, 2021.

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