Doe Agora!

As Áfricas que existem no Brasil em debate no Instituto Lula

Convidado para o segundo encontro do projeto Iniciativa África, do IL, professor Mário Theodoro falou sobre a desigualdade histórica que assola e atrasa o Brasil


As Áfricas que existem no Brasil em debate no Instituto Lula

“Não vou falar da África, mas das Áfricas que existem no Brasil.” Assim o professor Mário Theodoro anunciou sua participação no segundo encontro do Iniciativa África, ocorrido no último dia 14 de março. O projeto, criado em 2011 pelo Instituto Lula, foi retomado em fevereiro deste ano. Nesse primeiro debate, o pesquisador Acácio Almeida foi convidado para falar sobre a relação Brasil África na atualidade


“Retomar o contato com a África exterior necessita que a gente primeiro olhe para dentro e veja nossa África interior, e veja como as coisas estão se colocando”, afirmou o pesquisador. “E as notícias não são boas”, destacou o professor. “Não temos uma relação boa com a nossa África interna”, disse, ressaltando a sociedade desigual em que vivemos. 


Mário Theodoro é autor do livro A Sociedade Desigual – Racismo e Branquitude na Formação do Brasil. Economista com mestrado pela Universidade Federal de Pernambuco, doutor em Ciências Econômicas pela Université Paris I – Sorbonne, é consultor legislativo aposentado do Senado Federal. Foi secretário-executivo da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) do governo federal e diretor de Estudos Internacionais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). É professor no Programa de Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (UnB). 


“Estamos falando de uma sociedade com uma diversidade muito grande. O que é uma riqueza: o que podemos fazer com tanta diversidade, num país tão diverso, tão heterogêneo do ponto de vista de população. Isso traz embutido um potencial muito grande de inovação, de convivência com o diferente.”   O problema, observa ele, é que a nossa história fez com que essa diversidade se transformasse em desigualdade. “Somos hoje, entre as nações de grande PIB, os mais desiguais. Ganhamos até da Índia. Estamos no rol das sociedades mais desiguais do mundo.” E lamenta. “Uma sociedade que ao contrário de outras se acostumou com a desigualdade. E mais que se acostumar, se viciou na desigualdade. No Brasil, a desigualdade é alguma coisa que nos é muito íntima, no sentido de que é perene, está presente em toda nossa história.”


O professor lembra um período de grande crescimento econômico do Brasil, entre o final da década de 1960 e início da de 1970. “A gente tinha crescido a quase 11% ao ano em média. E os dados (sobre desigualdade) eram terríveis. Mesmo quando crescemos mais, mantivemos essa desigualdade perene.”


Características da sociedade desigual brasileira


Algumas características são marcantes nessa sociedade desigual. “Primeiro: o grau de desigualdade perene, circular, sempre em prejuízo de um determinado grupo racialmente definido. E essa desigualdade extrema, antes de ser vista como um problema social, é tida como natural, paisagem social”, diz. “Por exemplo, o estranhamento que causa às pessoas que vêm ao Brasil, a favela. Que é um achado, importantíssima do ponto de vista comunitário. Mas do ponto de vista da infraestrutura urbana é um desastre. Pessoas apinhadas tendo de sobreviver daquela forma. No entanto tem mais de 100 anos que a favela sobrevive como locus privilegiado de habitação principalmente das comunidades negras. E é naturalizado isso. É como se tivesse dois tipos de cidadania: a plena e a de favelado.”


Essa desigualdade se apresenta nas diversas esferas da vida social: mercado de trabalho, sistema educacional, na saúde. “Hoje, no Brasil, 40% da força de trabalho é informal. E desses, a grande maioria é população pobre e negra. Um trabalho desprotegido, de baixa renda, precário. E que é fundamental na estrutura do Brasil hoje. Somos a segunda nação de maior reciclagem de alumínio, por exemplo. E ela se dá com famílias catando em latas no lixo, no meio da rua, como forma de sobrevivência.”  E isso acontece em muitos outros casos, como empregos domésticos, de prestação de serviços. “Uma sociedade só pode ser considerada mais igualitária se uma pessoa não comprar diretamente o serviço de outra pessoa”, citou. “Como um engraxate, que deveria ser assalariado em uma loja onde trabalhasse. E não por gorjetas, nas ruas.” Ou as escolas onde estuda a população mais pobre, muito menos aparelhadas que onde estudam os mais ricos. “E aí já temos um outro motor de desigualdade.” 


Mesmo caso a saúde, com o sistema privado bem aparelhado, e os sistemas públicos que sofrem com redução de recursos e tem qualidade piorada.


Outra característica, além desses motores: há uma base que funciona como anteparo jurídico. Ou seja, todo esse quadro de iniquidade já colocado tem uma aura de legalidade dada por um sistema de segurança, de justiça, que coadunam com a ideia da desigualdade, reforçam, dando essa aura de legalidade. “A Justiça no Brasil inventou um mandado coletivo de busca e apreensão. Isso é totalmente ilegal, fora do controle, mas existe para as comunidades mais pobres. A Justiça protege a polícia para que faça esse tipo de coisa”, criticou. No Brasil, a cada 22 minutos morre um jovem negro. “E a contribuição do Estado para isso é muito grande.” 


Caso de polícia e branquitude


Nesse contexto, qualquer projeto de país que mexa com a questão da desigualdade é desqualificado e colocado fora do âmbito da política. “Reforma agrária, por exemplo, acaba sendo um debate policial. As demarcações de terras quilombolas, terras indígenas, reivindicação por moradia, viram caso de polícia.”


Não há como dialogar por mudanças, avalia ele, porque é tudo tão desigual que os interesses de alguns grupos numa ponta são totalmente diversos dos da outra ponta. “O sucesso de uns é o fim dos interesses de outros.” 


E essa desigualdade tem um motivo que a naturaliza e e seculariza: o racismo. “O resultado do Brasil de hoje é esse preconceito. Quantos ministros, juízes negros temos, quantos generais, quantos bispos? As portas se fecham quanto mais nobres são os espaços sociais. E essa discriminação é colocada de forma muito explícita para a população negra. E se desdobra para outros grupos como LGBTs, os sem-teto, os sem-terra, quilombolas, indígenas, entre outros.” 


E, cravou o professor, a quintessência desse racismo é a branquitude. “A transformação do elemento branco não somente no ideal, mas no único ideal.”  


Assim, a sociedade desigual traz como consequência um projeto de país no qual grande parte se mantém numa situação de miséria. E qualquer ação no sentido de minorar isso, por parte dos governos progressistas, é perseguida, colocada como nociva. “Qualquer saída redistributiva é mal vista pelos grupos majoritários no poder. Essa é a sociedade desigual.”


E ainda tem a zona de conforto muito grande proporcionada pelos ambientes desiguais. “As elites de classe média com serviços pessoais de baixo custo, as empregadas domésticas. Tudo isso é um conforto de que esses grupos não querem abrir mão.” 


Essa sociedade desigual tem consequências graves para o Brasil. 


Assista abaixo à íntegra do debate:



RECOMENDADAS PARA VOCÊ