Instituto Lula promove segundo seminário sobre os investimentos da China no Brasil e no mundo com foco em inovação
A presidenta do Instituto Lula, Ivone Silva, na abertura do Seminário Brasil-China: 50 anos de relações diplomáticas. Foto: Andrea Nestrea
14/06/2024 19:06
O que é bom para o Brasil na relação com a China? Como essa relação pode colaborar com o desenvolvimento e a criação de empregos no Brasil? Essas são algumas das questões fundamentais para a economia brasileira que o ciclo de seminários China no Brasil e no Mundo, realizado pelo Instituto Lula, busca debater. Assim, a presidenta do IL, Ivone Silva, abriu as apresentações do segundo seminário sobre o tema, realizado na útlima terça-feira (11), no Rio de Janeiro. O primeiro encontro ocorreu em São Paulo e o próximo será em Salvador.
O professor Giorgio Romano, responsável pela condução dos debates, ressaltou a importância desse ciclo de seminários sobre a China para avaliar quais são os avanços, o que se pode aprender com esse que é o principal parceiro comercial do Brasil e onde nosso país tem seu maior superávit comercial em todo o mundo. Especialistas, parlamentares, sindicalistas e representantes do governo brasileiro participaram dos debates.
Professor Giorgio Romano Schutte, da Universidade Federal do ABC (UFABC). Foto: Andrea Nestrea
O professor Carlos Aguiar de Medeiros, titular emérito em Economia Política Internacional e Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), falou sobre a ascensão chinesa, a era Xi Jinping e as relações Brasil-China. “Vou tratar aqui da China que começa a acelerar sua taxa de crescimento a partir do processo de abertura em 1979. E ao mesmo tempo com a transição de regime de formação social e inserção internacional”, explicou. “Grande parte do que vamos assistir nos últimos 20 a 30 anos tem a ver com o enorme processo de urbanização na China e suas implicações sobre a estrutura produtiva do país e da economia mundial.”
Medeiros ressaltou dados que fazem da China um caso único nesse processo de expansão. “O elemento geopolítico do progresso atual tecnológico, do tamanho da população e da sua estrutura econômica. Enquanto a trajetória de industrialização se parece com a trajetória de industrialização asiática, essas outras dimensões são particulares à China.”
Para o professor, outro aspecto importante e diferenciador da China é seu avanço em tecnologias de duplo uso, civil e militar. “Essa singularidade, do ponto de vista tecnológico, que dato de Xi Jinping (iniciado em 2012) para cá, tem a ver com seu avanço em tecnologias críticas como computação quântica, telecomunicação, inteligência artificial. E em áreas de fronteira como energias alternativas com diversas aplicações como estamos vendo agora com o que está acontecendo com veículos elétricos.”
A China é, desde 2009, o maior mercado para as exportações brasileiras, essencialmente soja, minério de ferro e petróleo. Já o mercado interno brasileiro absorve um fluxo crescente de manufaturas chinesas especialmente produtos da tecnologia de informação e comunicação, e mais recentemente painéis solares.
“Nos últimos anos, os fluxos de investimento procedentes da China cresceram de forma espetacular no Brasil”, afirma Medeiros. “A China, em alguns anos, firma-se como o principal investidor brasileiro especialmente no setor energético, petróleo e gás realizados pelas grandes estatais chinesas. E telecomunicações com o sistema 5G da Huawei.”
Essas relações comerciais em parte induziram as relações políticas e vice-versa. “Temos relações comerciais com a China desde 1974. E vai ser expandir sobretudo no primeiro governo Lula com a criação, nos anos 2000, de uma comissão de alto nível entre os dois países (Cosban). E com diversas iniciativas visando cooperação tecnológica entre os países.”
As relações econômicas Brasil-China encontram-se indiscutivelmente em expansão e possuem um grande potencial. Entretanto, elas trazem também contradições e rivalidades, explica o professor. “A divisão de trabalho entre a China e o Brasil assentada na especialização primário-exportadora brasileira e industrial chinesa, se de um lado consolida a atual corrente de comércio e fluxo de investimentos da China no país com saldo positivo para o balanço de pagamentos do país, por outro lado traz diversos desequilíbrios como a dependência na exportação de commodities primárias; desflorestamento, degradação ambiental e desindustrialização.”
Com efeito, avalia ele, trata-se de um comércio típico das relações “centro-periferia” entre o Norte e o Sul descritas na literatura estruturalista latino-americana como uma inserção periférica da economia brasileira.
A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) considera (dados de 2023) “dependência em commodities” uma pauta exportadora em que as commodities excedem a 60%. No caso do Brasil, informou Medeiros, a parcela de commodities nas exportações era de cerca de 73,4% em 2023. Outros exemplos são a Austrália, com 89%, a Rússia, com 77,5% a Argentina, 82,1%.
Assim, a “primarização” da pauta exportadora brasileira está centrada na soja, minério de ferro e petróleo (80% das exportações para a China). E inclui também minerais usados nas novas tecnologias como o lítio, manganês, nióbio e níquel. E isso decorre não somente da força da demanda chinesa, mas também pelo deslocamento das exportações industriais brasileiras para alguns mercados importantes entre os seus parceiros do Mercosul.
Apresentação do professor Carlos Aguiar de Medeiros. Foto: Andrea Nestrea
O professor lembrou que as extraordinárias escalas chinesas, os baixos salários pagos e a tecnologia moderna tornaram a competitividade chinesa imbatível. E isso tanto dos produtos industriais tradicionais em bens de consumo quanto das máquinas e equipamentos, insumos e produtos da tecnologia de informação e comunicação e os associados à tecnologia verde.
Assim, explica, a primarização e a desindustrialização em que está mergulhado o mercado brasileiro não decorreram de imposições e condicionalidades típicas de uma relação de dependência entre centro-periferia. Mas da ausência nos últimos anos de uma abrangente política industrial no Brasil capaz de transformar os interesses econômicos privados em oportunidades para diversificação da sua estrutura produtiva e exportadora. A ascensão chinesa, por outro lado, decorreu essencialmente de uma abrangente política industrial incluindo a proteção de sua indústria nacional.
Trata-se de uma estratégia nacional desenvolvimentista. “Uma política que no Brasil, desde os anos 1990, encontrou formidáveis obstáculos ideológicos”, afirma o professor. Presentemente, avalia ele, a diversificação da base energética, a descarbonização dos transportes, o adensamento de cadeias produtivas e os investimentos em infraestrutura e em novas tecnologias constituem importantes áreas para a retomada dessa estratégia no Brasil, em que a cooperação econômica e tecnológica com a China poderá constituir um importante vetor.
O Belt & Road Initiative (BRI), estratégia da China para investimentos na América Latina, foi o tema da exposição da professora Isabela Nogueira, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Laboratório de Estudos em Economia Política da China (LabChina). A chamada Nova Rota da Seda é a internacionalização, a grande geoestratégia chinesa.
“A política externa chinesa, nos últimos 15 anos, muda de maneira muito expressiva. A China deixa uma política externa que era conhecida como de desenvolvimento pacífico, de um país que se apresentava ao mundo como um grande país em desenvolvimento, que não se envolvia em grandes temas da governança global”, lembra a professora. “Parte da complementariedade entre China e Estados Unidos vigora ao longo das décadas de 1980, 1990 e parte dos anos 2000. A China, então, se inseria nesse capitalismo global como um grande chão de fábrica para produtos de marcas estrangeiras, multinacionais que se aproveitavam dessa mão de obra barata para transformar o país em uma plataforma exportadora.”
Essa política externa muda de forma radical com a chegada do que o atual presidente Xi Jinping chama de “sonho chinês” uma China forte, com outra política externa, assertiva. “A parceria estratégica com a Rússia muda o cenário geopolítico de maneira extraordinária”, explica Isabela. “E a rivalidade intercapitalista com os Estados Unidos explode.”
É a política externa do lobo guerreiro. Uma nova era do poder chinês e a Rota da Seda se insere aí. “Isso é uma mudança qualitativa dessa economia que passou por mudanças muito radicais nos últimos 15 anos. Uma economia que parte de um padrão de acumulação muito puxado por investimentos em ativos fixos, para um padrão puxado por investimentos em inovação”, afirma a professora. “A China não é um caso clássico de crescimento puxados pelas exportações. Não foi o resultado da vontade das multinacionais que se instalaram no país para usar como plataforma exportadora.”
Professora Isabela Nogueira, do Instituto de Economia da UFRJ. Foto: Andrea Nestrea
Tem nisso uma ativa política industrial, participação intensiva do Estado, com empresas estatais extraordinárias, com muito planejamento, muita política industrial. “Na China são três BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, do Brasil) além de bancos comerciais gigantescos a serviço de um projeto de industrialização, de transformação estrutural. Teve planejamento e os instrumentos para que essa transformação estrutural acontecesse”, elenca Isabela.
Agora a China quer liderar em tecnologias chaves, da quarta revolução industrial, ou onde não haja monopólios consolidados. “É nesse contexto que se insere a nova Rota da Seda. Ela nasce do projeto de conectar a China à Europa e vai ganhando outras dimensões num mapa mundial”, relata. “Em dez anos da nova Rota da Seda – comemorou-se no final do ano passado – os chineses afirmam ter desembolsado um trilhão de dólares. Mais do que financiamento a obras de infraestrutura, uma estratégia de política externa com muitos objetivos geoeconômicos.”
Isso implicou num aumento expressivo do comércio exterior chinês. E de exportação da sua capacidade ociosa instalada em setores em que está produzindo mais do que consome, exportação de padrões tecnológicos seja no 5G, nos trens de alta velocidade, nas baterias elétricas ou no processo de eletrificação das frotas.
Para os países receptores, para quem é signatário da BRI, há uma enorme variedade de situações. Há países nos quais permanece ou se aprofunda a relação centro-periferia, como no Congo. Há países em que o processo é muito lento, como no Paquistão. “E outros como Indonésia e Grécia, nos quais há o tal projeto nacional de desenvolvimento. Aí a gente assiste o aumento do espaço de políticas públicas.”
Os diretores do Instituto Lula, Ana Flávia Marques, Paulo Okamotto, Wellington Damasceno e a presidenta Ivone Silva. Foto: Andrea Nestrea
A iniciativa da nova Rota da Seda chega a praticamente todos os países africanos, ao leste europeu, alguns países da Europa Central, como Portugal e Áustria, além da América Central e América do Sul. “São 146 países signatários. As grandes exceções são os países aliados aos Estados Unidos. Além do próprio Estados Unidos, países da Europa Central, Canadá, México, Austrália, Índia e Japão. “A única grande surpresa desse mapa é o Brasil, que tem uma política externa muito próxima da política externa chinesa e está fora dessa nova Roda da Seda”, diz a professora. “O fato é que, falando estritamente do ponto de vista econômico, o Brasil não precisa ser signatário da BRI. Ele já é um super receptor de investimento chinês. No acumulado de 2005 até 2022, o Brasil recebeu 48% dos investimentos chineses na América do Sul.”
Esse investimento em termos de valores tem uma acomodação, mas do ponto de vista do número de projetos está crescendo, notadamente no setor de carros elétricos. Assim, aumenta a participação e relevância do Brasil e América Latina para a estratégia de expansão do poder global chinês. E fica a preocupação para quem está pensando política industrial e transformação estrutural: quem vai ter o domínio desse padrão tecnológico? “Investimento estrangeiro direto sem condicionalidade, sem criação de elos com a transformação estrutural, com a política industrial doméstica não vai trazer desenvolvimento para o país receptor”, conclui a professora. “[Esse tipo de investimento] aumenta o espaço para políticas públicas para países com algum projeto nacional. Quem não tem, vai reforçar a condição periférica e a relação centro-periferia.”
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José Eduardo Cassiolato, diretor do Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI e secretário-geral da Global Research Network on the Economics of Learning, Innovation and Competence Building Systems, falou sobre o Sistema Nacional de Inovação: a experiência chinesa em perspectiva.
O economista comentou características do desenvolvimento chinês. E mencionou a criação de empregos pelas empresas de veículos elétricos. A BYD, por exemplo, exporta grande parte da sua produção de baterias e mantém uma força de trabalho de 700 mil pessoas.
Na China, a demanda se antecipa à oferta, explicou ele. “Tem um número maior de entrantes, e isso acontece em várias atividades, com diferentes capacitações. Mas, no final, há uma conglomeração organizada pelo governo chinês. Esses empresários todos sabem que não vão perder no final das contas.”
As pequenas empresas high tech, na grande maioria, ou são controladas pelo governo local, ou pelas universidades, ou pelas grandes corporações chinesas. “As multinacionais também entram lá, mas são absolutamente minoritárias.”