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Gate analisa desmonte da Previdência Social no Brasil

Previdência Social brasileira: 99 anos de difícil inclusão e o atual desmonte. Está no ar a vigésima edição do Boletim Gate, produzido pelo Grupo de Acompanhamento de Temas Estratégicos do Instituto Lula.


Gate analisa desmonte da Previdência Social  no Brasil

Foto: Mídia Ninja

Previdência Social brasileira: 99 anos de difícil inclusão e o atual desmonte. Está no ar a vigésima edição do Boletim Gate, produzido pelo Grupo de Acompanhamento de Temas Estratégicos do Instituto Lula. 

Abaixo, você pode ler o boletim na íntegra e fazer o download do documento. Ao final desta página, você encontra o link para os outros boletins produzidos pelo Gate.

Previdência Social Brasileira: 99 anos de difícil inclusão e o atual desmonte

Por Ana Luiza Matos de Oliveira, Ana Paula Guidolin e Jorge Abrahão de Castro

O ponto de partida para o surgimento da previdência social brasileira pode ser datado em 1923, com a promulgação da Lei Eloy Chaves. Antes desse período, as medidas adotadas eram incipientes e de pouca importância em termos quantitativos, abrangendo pequena parcela de trabalhadores e refletindo a pouca relevância que o Estado dava às questões trabalhistas e sociais. Essa lei não veio por benevolência, mas como resposta às greves e reivindicações dos trabalhadores na época. Ela lançou bases jurídicas e conceituais para inclusão de segmentos de trabalhadores em uma proteção previdenciária, mediante a criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) dos empregados das empresas ferroviárias, na época segmento fundamental para o transporte de mercadorias e pessoas e, logo em seguida, se expandiu para empresas de outros ramos, como portuários e navegação marítima. Apesar de serem criadas e reguladas pelo Estado, as caixas tinham natureza civil e privada, não tendo participação direta do Estado em sua gestão e financiamento.

A partir de 1930, o país passou por transformações relevantes com o processo de industrialização, urbanização, centralização de poder no governo federal e o início de estruturação do sistema de proteção social no país. Esse sistema tinha preocupações com as regulações do trabalho, a previdência social e outras áreas sociais. Exemplo desse momento é a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que também passou a cuidar das questões relacionadas à previdência social, e que impulsiona leis trabalhistas tais como a instituição do salário mínimo, a jornada de trabalho, férias, e a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Nessa época, na previdência inicia-se a estruturação abrangente do sistema com a criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), que eram autarquias centralizadas por categorias profissionais, de abrangência nacional, como a dos bancários, dos comerciários e a dos industriários. Esses institutos tinham liberdade para o estabelecimento dos planos de benefícios e alíquotas de contribuição requeridos, ocasionando elevada fragmentação que se manifestava em diferentes capacidades de financiamento e plano de benefícios, provocando grandes diferenciações na proteção previdenciária. A evolução da abrangência do sistema previdenciário foi seletiva, pois esteve conectada à expansão do mercado de trabalho urbano. Com isso, ficaram fora do sistema os trabalhadores rurais, os domésticos, profissionais liberais e demais trabalhadores não regulados pelo Estado.

A expansão seletiva, a fragmentação e as diferenciações perduraram um longo período, mas, em 1960, depois de várias tentativas, a Lei Orgânica de Previdência Social (LOPS) unificou o sistema previdenciário com vistas a corrigir as distorções promovidas pelos IAPs, mediante a uniformização das contribuições e dos planos de benefícios e de maiores responsabilidades de financiamento para o Estado, elementos que impulsionavam o sistema para um regime de repartição simples. No entanto, a centralização da gestão não foi imediata e só veio a ocorrer no final da década, já no decorrer do regime militar, com a criação do Instituto Nacional da Previdência Social (INPS). A expansão seletiva continuava, mas houve ampliações para os trabalhadores urbanos formais e para pequena parte dos conta própria. Todavia, ainda eram excluídos os trabalhadores domésticos e os trabalhadores rurais, que só passaram a ter acesso a alguns benefícios previdenciários a partir do início dos anos 70. A forma de inclusão desses trabalhadores rurais significou o primeiro passo para romper a lógica contratual anterior.

>No decorrer dos anos 70, período de elevado crescimento econômico e de reestruturação conservadora e autoritária da ação do Estado, foi criado o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e, ao final da década, o processo de gestão e organização institucional avança com a criação do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Sinpas), que articula uma série de órgãos que prestavam serviços previdenciários e assistenciais. Por outro lado, o crescimento permitiu a expansão do mercado de trabalho urbano e a estrutura de financiamento do sistema baseada na capacidade contributiva individual, que facilitaram o alargamento do sistema. Com isso, uma parcela significativa da população trabalhadora brasileira passou a contar com a possibilidade de filiação ao sistema público de previdência social, embora com pré-requisitos de filiação e benefícios a serem auferidos bastantes diferenciados segundo a forma de inserção do trabalhador no mercado de trabalho.

No início dos anos 80, a grave retração da economia brasileira foi um sério problema para o tipo de estrutura previdenciária que tinha sido engendrada nos anos anteriores. Por um lado, o emprego e a massa de salários caíram, o que colocou sérios problemas para o tipo de financiamento previdenciário construído. Por outro, as demandas por benefícios se ampliaram. A partir da metade dos anos 80, após a queda da ditadura militar, a redemocratização facilitava a colocação das demandas sociais no jogo político, mas a crise econômica e social persistia e o sistema previdenciário que havia sido gestado, em grande parte, no período autoritário, demonstrou que tinha sérios problemas e insuficiências estruturais.

Como consequência do processo de democratização, em 1988 foi promulgada uma nova constituição para o país, o que tornou possível avançar e efetuar mudanças substantivas no modelo de proteção social e no sistema previdenciário mediante uma série de inovações, como: i) introdução do conceito de Seguridade Social — unindo previdência,

assistência social e saúde pública — para expressar um arranjo institucional mais integrado e consistente com uma ampla rede de proteção aos riscos sociais inerentes ao ciclo de vida, à trajetória laboral e à insuficiência de renda; ii) garantia dos direitos sociais, que não são mais conectados a categorias profissionais e segmentos corporativos, ampliando o acesso da população a bens e serviços públicos; iii) ampliação da cobertura previdenciária de caráter contributivo aos principais riscos sociais — idade, invalidez, morte, acidentes do trabalho, reclusão e proteção à família; iv) garantia da regularidade do valor dos benefícios; v) estabelecimento do princípio da vinculação entre o salário mínimo e o piso dos benefícios previdenciários e assistenciais permanentes; vi) equiparação dos direitos dos trabalhadores rurais aos urbanos; e vii) criação do Orçamento da Seguridade Social, que deveria primar pela diversidade das bases de financiamento que seriam oriundas do Estado, dos trabalhadores e empregadores.

No ano de 1990, refletindo o processo de centralização institucional foi criado o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), decorrente da fusão do INPS com o Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (IAPAS). No entanto, no decorrer da década de 90, o modelo social e previdenciário da Constituição de 1988 teve que

conviver com uma realidade econômica e social bastante adversa, além de ser confrontado em seus desígnios com o fortalecimento de setores conservadores que haviam se articulado em torno das ideias neoliberais de abertura comercial, globalização, reforma do Estado e privatizações, e as estratégias de descentralização, seletividade e focalização e estabelecimento de parcerias com o setor privado para implementação dos programas sociais. Nessa perspectiva, por exemplo, é que ocorreu a denominada “reforma previdenciária” de Fernando Henrique Cardoso, que restringiu alguns direitos dos trabalhadores do setor priva-

do: estabeleceu que o tempo de contribuição seria o elemento central para se obter a aposentadoria e criou a forma de cálculo do fator previdenciário que diminuía o valor do benefício recebido após a aposentadoria. Em contrapartida, algumas salvaguardas jurídicas do sistema de seguridade social impediram que todos os direitos sociais sucumbissem aos ajustes reformistas, o que possibilitou a ampliação da cobertura da previdência rural e da assistência social.

De 2003 até o golpe do impeachment, em 2016, no período dos governos de Lula e Dilma do Partido dos Trabalhadores (PT), a orientação política para o desenvolvimento que mesclava a busca do crescimento econômico com a inclusão social foi determinante para definir o estilo de políticas sociais adotado pelo governo federal. No caso previdenciário, apesar de ter efetuado no início do milênio uma “reforma da previdência” do setor público com restrições a benefícios dos servidores públicos, a política previdenciária que prevaleceu para a maioria da classe trabalhadora foi a ampliação da filiação dos trabalhadores do setor privado ao sistema, além da expansão da cobertura e aumento do número de beneficiários. Além disso, a política de valorização do salário mínimo gerou impactos positivos nos benefícios da previdência social, e foi um dos elementos mais importantes para recuperação da renda e da capacidade de consumo de grande parte da população mais pobre.

Esse período representou, desde a Lei Eloy Chaves, um dos momentos históricos de maior ampliação da cobertura e de melhores benefícios da previdência social, com consequente melhoria das condições de vida da população, em todas suas dimensões.

Por sua vez, o período que se inicia após o golpe, em 2016, é marcado por governos que demonstram ter o objetivo de desmonte do estado de proteção social que vinha sendo construído no decorrer das últimas décadas. Na previdência, o desmonte vai além das mudanças em seu próprio regramento, já que as bases do sistema previdenciário são duramente impactadas pela deterioração do mercado de trabalho, que, por sua vez, foi agravada com a “reforma trabalhista” aprovada em 2016. A estratégia desastrada de ajuste fiscal macroeconômico e a promoção de reformas estruturais guiadas pelo princípio da austeridade fiscal levaram a níveis recordes de informalidade e desemprego, mesmo antes da pandemia. Esse cenário foi utilizado como justificativa para a “reforma da previdência”, ignorando o fato de que o suposto “déficit da previdência”, além de falacioso em termos técnicos, é inócuo de sentido, porque a própria dinâmica da economia que poderia ser estimulada via investimentos públicos aumentaria o valor arrecadado.

Ignorando alternativas menos danosas para assegurar os direitos adquiridos ao longo de décadas e com base em fundamentos falsos, uma das primeiras propostas apresentadas por Bolsonaro em seu mandato foi a denominada “reforma previdenciária” da PEC 6/2019. Esse projeto pretendia erodir as bases do sistema público, assim abrindo espaço para a previdência privada. A premissa básica era de dificultar o acesso a benefícios e reduzir seu valor para quem conseguisse recebê-los. Dessa forma, as mudanças aprovadas em 2019 estabeleceram o fim dos dois sistemas que existiam — aposentadoria por tempo de idade e por tempo de contribuição —, deixando apenas uma regra de idade mínima de 65 e 62 anos para homens e mulheres, respectivamente. Reduziu-se a diferença entre os gêneros e o valor integral só é disponibilizado após uma contribuição de quatro décadas, tanto para homens quanto para

mulheres. O cálculo do benefício também foi alterado ao se considerar todos os salários de contribuição, e não apenas os 80% maiores como antes. O maior tempo de contribuição exigido com base no aumento da longevidade ignora que a contribuição não é ininterrupta, tendo em vista o alto grau de informalidade e rotatividade do mercado de trabalho brasileiro. Com isso deve ocorrer uma dupla exclusão, sendo a população mais pobre, já marginalizada no mercado de trabalho, a mais prejudicada pela mudança no regramento previdenciário.

No caso da diferenciação previdenciária de gênero, é importante lembrar que a aposentadoria diferenciada para as mulheres está presente desde a Constituição Federal de 1967, por um reconhecimento de que elas vivenciam uma condição mais desfavorável no mercado de trabalho.

A partir de dados da Pnad, calcula que as mulheres trabalham oito horas a mais que os homens por semana, considerando a jornada total formada por tempo gasto com trabalho remunerado e não remunerado. Isso representaria, no ano, trabalhar cerca de 66 horas a mais do que os homens e, ao longo de 25 anos, 4,5 anos a mais, o que de alguma forma justificaria a diferença de cinco anos entre as idades mínimas para aposentadoria entre homens e mulheres, quebrada pela última reforma da previdência.

Essa reforma não foi neutra em termos de gênero e, pior, ampliou as desigualdades de gênero no Brasil. Além disso, a reforma desconsiderou o fato de que a taxa de participação das mulheres em relação aos homens é muito desigual, o que impacta também no acesso à previdência social no Brasil de diversas formas. A taxa de desemprego e de informalidade das mulheres também é mais elevada. Ou seja, em várias questões, homens e mulheres não enfrentam as mesmas condições no mundo do trabalho.

Por isso, aproximar a idade de aposentadoria dos gêneros é sobrecarregar ainda mais as mulheres, tornando ainda mais difícil o acesso à aposentadoria e ainda mais pesada a divisão sexual do trabalho, em que as mulheres são majoritariamente responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados não remunerado no âmbito domiciliar. O Dieese aponta que as transformações realizadas na previdência social pela reforma, em especial pelo aumento de tempo de contribuição exigido pelas mulheres, têm forte impacto nas mulheres. “Em todas essas situações, as mulheres são o público majoritário e serão, por isso, mais atingidas do que os homens”, lembra a publicação. Ainda, enquanto as mulheres podem, em teoria, se aposentar do trabalho remunerado, elas não se aposentam do trabalho doméstico.

Assim, a pretensa equalização das idades esconde uma realidade de desigualdade no mercado de trabalho, sobrecarregando ainda mais as mulheres em sua dupla jornada  —  trabalho remunerado e trabalho doméstico — e de discriminação no mercado de trabalho. Com isso, a reforma previdenciária do governo Bolsonaro restringiu ainda mais o acesso a esse direito previdenciário das mulheres, ampliando as desigualdades de gênero no Brasil.

Por fim, nos tempos atuais é preocupante a tentativa de desconstitucionalização dos temas previdenciários ao propor para lei complementar a definição de novo regimento.

A tendência de desvincular, desobrigar e desindexar é o principal e mais danoso ataque aos direitos estabelecidos pela Constituição e possui impacto diferenciado ao se considerar os recortes de raça, classe e gênero.

Acesse os boletins anteriores:

19) Construindo maiorias sociais para o combate à crise climática 

18) Mercado de trabalho e desigualdade: caminhos para superar os desafios da economia capitalista

17) Cidades e retomada do desenvolvimento: um roteiro para o debate

16) Segurança de renda assistencial brasileira na encruzilhada: o futuro pode ser o passado piorado

15) Participação privada: solução para a infraestrutura?

14) Estressamento institucional como método de “governo”

13) Tão perto dos Estados Unidos, tão longe da China: a política externa brasileira no governo Bolsonaro

12) Cinema: o desmonte de uma trajetória em desenvolvimento

11) Brasil perde "cérebros": que falta faz um projeto de desenvolvimento para o país!

10) As cidades serão as mesmas no pós-pandemia? 

9) Quem tem medo do Mercosul?

8) Como fica a democracia no capitalismo de plataforma e vigilância

7) Trabalho nas plataformas digitais

6) A longa queda da indústria brasileira

5) Brasil: nem democracia, nem autoritarismo

4) O papel do planejamento na superação da crise ambiental

3) Mudanças estruturais no mundo do trabalho: determinantes e tendências

2) Teto de gastos e a destruição do Estado Social Cidadão de 1988

1) Brasil e América Latina: dilemas da região a partir da disputa entre EUA e China

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