Por Stela Pastore...
04/08/2021 14:08
Por Stela Pastore, para o Brasil de Fato
“A tributação no Brasil é altamente concentradora de renda e geradora de desigualdade”, registrou a economista Rosa Chieza, na terceira aula do ciclo de debates “Desenvolvimento, Novas Desigualdades e Justiça Fiscal no Brasil”, realizada nesta terça-feira (3).
A professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) discorreu sobre a correlação de forças políticas que não permitiu que o país adotasse medidas tributárias progressivas, implementadas por muitos países a partir da década de 1930, apesar de ter iniciado um novo estágio de desenvolvimento econômico à época com forte papel do Estado. “No entanto, no campo da tributação desigualdades sociais se aprofundaram com tratamentos privilegiados para altas rendas e patrimônios.”
Ela observou que apenas na Constituição de 1988 o Brasil encampou diretrizes do modelo de bem-estar social, já adotadas pelos Estados Unidos e Europa ainda no pós-guerra, mas imediatamente desestruturadas pela onda neoliberal que aprofundou as distorções das normas tributárias, favorecendo ainda mais os mais ricos.
No período da promulgação da Constituição o Imposto de Renda das Pessoas Físicas tinha sete alíquotas progressivas, sendo que a maior delas era de 45%. Porém, já no ano seguinte, a alíquota máxima foi reduzida para 25% e a quantidade de alíquotas foi reduzida para apenas duas, beneficiando os mais ricos, aprofundando a desigualdade, demonstrou a economista em sua apresentação.
Importante instrumento distributivo para enfrentar a crise e promover o desenvolvimento econômico, o sistema tributário segue a cabresto dos mais poderosos, comprovou a estudiosa dos impactos fiscais na sociedade, na economia e na política. Rosa Chieza observa que um sistema distributivo injusto, além de ser prejudicial à economia, é nocivo também à democracia. “O Congresso recebe os projetos prontos de seis ou sete corporações que detém o poder político, a despeito da cidadania brasileira ter votado”, lamenta.
O auditor fiscal Paulo Gil Holck Introíni, também palestrante do tema ‘Tributação e desigualdade no Brasil’, historiou a reforma silenciosa da década de 1990, realizada na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Também chamada de sorrateira, por ter sido feita sem alarde para que a sociedade não percebesse a migração da carga tributária dos mais ricos para os mais pobres, essa reforma foi oficializada em 26 de dezembro de 1995, com a publicação da Lei 9.249.
Batizada de presente de Natal dos ricos, a medida isentou os lucros e dividendos distribuídos pelas empresas aos sócios e acionistas, tanto para pessoas físicas como jurídicas, e permitiu a dedução dos juros de capital próprio pagos aos sócios e acionistas, mudanças consideradas “fratura exposta da tributação brasileira”, pelo integrante do Coletivo Auditores Fiscais pela Democracia, por desonerar as rendas do capital e onerar assalariados e consumidores.
Salientou também que mais da metade da receita de impostos é oriunda do consumo, e os tributos estão embutidos nos preços dos produtos e isso torna o sistema tributário muito injusto com os mais pobres.
“No Brasil, 60% da arrecadação é paga pelos consumidores. Como são os mais pobres que gastam praticamente toda a sua renda no consumo, são eles os mais onerados com tributos”, expõe Paulo Gil. Atualmente quem ganha dois salários-mínimos é tributado em 50%, enquanto quem ganha mais de 30 s/m tem alíquota de 28%.
Para o auditor fiscal, essa situação se agrava quando também o Imposto de Renda passa a desonerar os mais ricos. Quem ganha R$ 5 mil paga o mesmo percentual de imposto de quem tem renda superior a 240 salários-mínimos por mês, porque a maior parcela das rendas dos mais ricos é composta por lucros e dividendos isentos de impostos.
O palestrante enfatizou que o tema tributário é uma prioridade para os mais ricos. “Diferente de outros segmentos mais populares, que ainda não despertaram para a importância desse assunto estratégico, há diversas instituições patrocinadas por setores econômicos poderosos articulando movimentos para proteger interesses e manter privilégios.”
Paulo Gil sugere cuidado com a palavra ‘reforma’. A partir do neoliberalismo, o termo veio com ‘sinal trocado’, alerta. Se no passado, as reformas estruturais visavam ao fortalecimento do Estado para a promoção do desenvolvimento, hoje, elas visam o desmonte das estruturas construídas.
“As chamadas reformas trabalhistas e da Previdência tiraram direitos, a reforma econômica privatizou; e, portanto, a reforma tributária que vem nesta onda certamente não fortalecerá o financiamento do Estado.”
“É inconcebível que em 2021, sendo um dos maiores produtores de alimentos do mundo, metade da população viva em situação de insegurança alimentar. Precisamos agir em coletividade”, convidou Rosa Chieza, lamentando ainda os 20 milhões de desempregados.
Os palestrantes foram enfáticos quanto à importância em derrotar mitos como o de que o Brasil tem carga tributária muito elevada, de que o principal problema é que o sistema tributário é complexo e precisa ser simplificado, de que produz ineficiência econômica, de que não se deve tributar ricos para que possam investir no país e de que é preciso diminuir o gasto público.
“Não há no mundo nenhum exemplo de país que tenha se desenvolvido sem que o Estado seja indutor da economia, tenha política ativa de industrialização e tenha tributação progressiva”, destacou o auditor fiscal da Receita Federal e vice-presidente do Instituto Justiça Fiscal, Dão Real Pereira dos Santos, mediador desse terceiro encontro.
“A tributação é instrumento para construir o modelo de sociedade que queremos. Não podemos perder o controle sobre este instrumento importante, senão ele pode ser usado para impedir essa construção”, concluiu.
A função social e econômica da tributação, a importância da redução das desigualdades e a falácia da austeridade fiscal também foram abordados neste encontro da série de 10 aulas, sempre às terças-feiras, 19h30, até final de setembro.
Os fundamentos da desigualdade social, as transformações da sociedade contemporânea e os desafios imediatos e estratégicos estão sendo aprofundados neste ciclo que tem o sistema tributário como eixo. A atividade de formação é uma parceria entre o Instituto Lula, o Instituto Justiça Fiscal e as entidades coordenadoras da campanha Tributar os Super-Ricos. Todas as edições estão disponíveis nas páginas dos realizadores.
“É necessário capacitar a cidadania com conhecimento para que possamos mudar a correlação de forças e reduzir a desigualdade”, entende a professora de Economia, que também integra o IJF.
A campanha Tributar os Super-Ricos é formada por 70 organizações, o movimento propõe tributar apenas 0,3% mais ricos, resultando em receita anual aproximada de R$ 300 bilhões, corrigindo distorções fiscais. Oito propostas foram lançadas e apresentadas aos parlamentares em agosto de 2020, porém os projetos ainda não estão tramitando no Parlamento.
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