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Carta aberta pela Base Nacional Comum Curricular

“Depois que o governo golpista de Temer assumiu, tivemos a imposição autoritária de retrocessos.”


Carta aberta pela Base Nacional Comum Curricular

Aloizio Mercadante, ex-ministro da Educação. José Cruz/Agência Brasil

Por Aloízio Mercadante*

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece aquilo que todas as escolas, públicas e privadas, devem ensinar a cada ano da educaçãobásica. Além disso, a BNCC orienta escolas do país inteiro na produção de livros didáticos e na elaboração dos currículos, na própria formação inicial e continuada dos professores, desenhando como devem ser os itinerários formativos dos nossos alunos. A BNCC deve assegurar, na sua essência, o mesmo direito de aprendizagem para todos os estudantes do país.

A história já nos mostrou, analisando outras experiências internacionais de mudanças curriculares, que a participação social e o debate democrático são fundamentais para o êxito nesses processos educacionais. Por isso, em nosso governo, fizemos uma construção coletiva da BNCC, com mais de 12 milhões de contribuições. Um processo amplo, participativo, transparente e democrático.

Depois que o governo golpista de Temer assumiu, tivemos a suspensão do processo anterior de construção democrática da BNCC e a imposição autoritária de retrocessos. Agora estamos na fase final de aprovação e, mais uma vez, falta diálogo. Diante da imposição dos golpistas para aprovação da nova versão da BNCC sem qualquer diálogo e disposição de entendimento, cinco destacadas entidades (Anfope, Anpae, ANPed, Cedes e Forundir) solicitaram ao CNE a suspensão da votação do texto marcada para a próxima semana. As entidades educacionais argumentam que não receberam respostas do CNE sobre as contribuições e sugestões que apresentaram para a BNCC.

Alegam que foram contribuições bem fundamentadas, representando a opinião de educadores e pesquisadores no campo da educação. De acordo as entidades, as reinvindicações, até hoje sem resposta, visam “contribuir com uma concepção curricular inclusiva, plural e emancipatória, que contribua para a garantia do direito à educação pública, gratuita, laica, democrática, inclusiva e de qualidade socialmente referenciada”.

Ao contrário do que tenta argumentar o Ministério da Educação, as alterações realizadas monocraticamente na nova versão da base não são apenas ajustes pontuais de aprendizagem e no campo da experiência da educação infantil. Muito pelo contrário. As mudanças realizadas pelo MEC do golpe na 4ª versão da BNCC, sem qualquer diálogo e participação social, representam um retrocesso inaceitável, refém de uma visão de mundo retrógrada e obscurantista.

Aos fatos. Foram excluídas da base todas as menções ao combate à discriminação de gênero. Os golpistas incluíram essa pauta dentro do ensino religioso. Com isso, se a base for aprovada da forma que está, o tema deverá ser discutido, nas escolas, a partir da concepção de “gênero e sexualidade”, segundo as tradições religiosas. Compete lembrar que, na versão anterior da BNCC, o Ministério da Educação já havia retirado do documento as expressões “identidade de gênero” e “orientação sexual.

Essa visão obscurantista e retrógrada esteve presente em todo o debate do Plano Nacional de Educação (PNE) e mesmo da BNCC. Representa uma tentativa de ocultar o preconceito e a violência patrocinados pela homofobia nas escolas brasileiras. Milhares de jovens, meninos e meninas, voltam todos os dias das suas escolas, chorando, deprimidos, envergonhados, humilhados, discriminados e até agredidos fisicamente, sofrendo todas as formas de bullying, em razão der suas orientações sexuais. A nova BNCC não pode compactuar e ocultar essa realidade cruel, que precisa ser discutida e superada.

A convivência e respeito à diversidade deve ser uma dimensão fundamental de uma escola acolhedora. Nesse sentido, a BNC não é só o alicerce para os futuros profissionais, é, também, um elemento essencial para os seres humanos e cidadãos que estaremos ajudando a formar nas escolas.

Essa discussão se faz ainda mais necessária, inclusive nas escolas, em um cenário de aumento generalizado da intolerância, da violência e do discurso do ódio no país. Uma triste realidade que avança e que foi agravada a partir do golpe que rompeu com o pacto democrático de 1988, ao retirar do governo uma presidenta eleita, sem que ela tenha cometido crime de responsabilidade, passando por cima de mais de 54,5 milhões de votos.

No Brasil do golpe, a escalada dos ataques à diversidade e às minorias perdeu a vergonha. Está escancarada. Para citar alguns exemplos, relembramos que, pela primeira vez na série histórica, a média de mortes ligadas à homofobia passou de um assassinato por dia no Brasil. Cartazes com dizeres neonazistas e xenófobos foram espalhados pela cidade de Blumenau (SC), a poucas semanas do início da Oktoberfest. Nas redes sociais, internautas denunciam as ameaças dos cartazes: “Negro, comunista, antifa e macumbeiro. Estamos de olho em você”. Além disso, entre janeiro de 2015 e o primeiro semestre deste ano, o país registrou uma denúncia de discriminação religiosa a cada 15 horas.

Na educação, não é diferente. Ao menos três professores e uma aluna de mestrado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) sofrem ameaças, inclusive de morte, em razão do teor de pesquisa acadêmica que desenvolvem dentro da universidade, por tratar de gênero. Em iniciativa promovida pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade da Califórnia, a filósofa norte-americana, Judith Butler, referência mundial nos estudos de gênero e codiretora do programa de teoria crítica da Universidade da Califórnia, foi alvo de ataques de grupos fundamentalistas.

No Enem, uma decisão judicial de primeira instância, referendada de forma monocrática pelo STF e com pouca ou nenhuma contestação do Ministério da Educação, permitiu que redações desrespeitassem frontalmente osdireitos humanos. Ainda esta semana, um neonazista ameaçou cometer atentado contra “travestis, esquerdistas e feministas” da USP, em e-mail encaminhado à secretaria de alunos do curso de Letras da universidade.

Por isso tudo, nas sociedades democráticas, a educação está indissoluvelmente associada aos direitos humanos. Nessas sociedades, a educação não visa apenas o preparo técnico e intelectual dos alunos, mas também o exercício da cidadania e a construção de uma cultura de paz, o que implica, necessariamente, aprender a respeitar os direitos de todos os cidadãos, independentemente de raça, gênero, orientação sexual, opção religiosa ou condição social.

A BNCC é ferramenta fundamental desse processo de formação do exercício da cidadania. Ao impor de forma autoritária e truculenta uma visão obtusa, retrógrada e obscurantista à base, o MEC do golpe contribuirá para institucionalizar a cultura da discriminação, da intolerância e do ódio em nossas escolas.

A defesa dos direitos humanos transpassa qualquer posicionamento político ou ideológico. Por isso, é essencial a retomada dos debates, do diálogo e do entendimento em torno da nova BNCC, com o resgate de valores essenciais para a educação, como o integral respeito aos direitos humanos no processo de formação de nossa crianças e juventude.

Aloizio Mercadante, ex-ministro da Educação

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