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O que importa para o Brasil na relação com a China

Série promovida pelo Instituto Lula evidencia importância dessa parceria e destaca formas de promover justiça social e desenvolvimento sustentável


O que importa para o Brasil na relação com a China

Foto: Amanda Tropicana 

A série de debates sobre a China no Mundo e o Brasil, promovida pelo Instituto Lula, teve como objetivo fazer uma reflexão sobre essa parceria de acordo com as necessidades da nossa nação. No dia 30 de julho, em Salvador, na terceira e última sessão desses encontros, a presidenta do Instituto Lula, Ana Flávia Marques, relembrou o principal objetivo do IL ao tratar do tema: o que é relevante para o Brasil nessa relação com essa importante potência. "Temos de fazer uma reflexão do ponto de vista de parcerias no ramo da ciência e tecnologia, também do mercado da saúde, em investimentos em energia e construção civil. Como essa parceria pode ajudar o Brasil a crescer com mais justiça social, com emprego e desenvolvimento sustentável”, ressaltou.


Os outros dois encontros, sempre com a participação de representantes dos movimentos social, sindical, da academia e do governo brasileiro, ocorreram em São Paulo, em maio e no Rio de Janeiro, em junho.


Mediador da série de debates, o professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) Giorgio Romano abriu esse último seminário falando sobre a ascensão chinesa, a Era Xi Jinping  e as relações Brasil-China. Coordenador do VI Encontro Nacional Rede Brasileira de Estudos da China, o professor lembrou os 50 anos da relação entre os dois países, os 40 anos da relação entre o Partido dos Trabalhadores e o Partido Comunista chinês e a vinda de Xi Jinping ao Brasil, em novembro, para participar do encontro do G20 – reunião das 20 maiores economias do mundo.


Crescimento muito rápido

Giorgio ressaltou o rápido crescimento chinês nos anos 2000, saindo do terceiro lugar na produção industrial mundial em 2001, com 10% do valor bruto adicionado, para o primeiro lugar com 28,3% em 2021. 


“Isso veio acompanhado de uma política externa quase invisível nos primeiros anos. Depois, muito mais assertiva: a China queria ser respeitada e reconhecida como a grande potência que se tornara.” E para isso contou com a parceria do Brasil, diz o professor. 


Alguns dados demonstram a magnitude chinesa e o que levou esse país a se tornar a potência atual. O crescimento médio chinês entre 1978 e 2023 foi da ordem de 8,9%. O PIB per capita do país em 2022 foi de quase US$ 13 mil, ultrapassando os US$ 12 mil do Brasil. A China é um país que nunca sofreu uma crise financeira e isso tem uma explicação principal: mais de 90% do sistema bancário chinês é estatal, 95% nacional. Assim, avalia o professor, a “teoria do colapso chinês” não se sustenta por enquanto. “Vamos continuar vendo esse crescimento, mesmo que em porcentagem menor.” 


As empresas estatais, que eram 100% até 1978, chegaram entre 25% a 30% em 2023, elas permanecem sendo responsáveis por todos os setores estratégicos como energia e petróleo. Energia que, aliás, é um paradoxo. Diante do aumento da demanda, o país ainda tem o carvão como foco da matriz energética, mas de longe é o país que mais investe em energias renováveis. Maior importador de petróleo do mundo, a China é também o país campeão em emissões de gases do efeito estufa. Quando analisado do ponto de vista per capita, o campeão desse lamentável título são os Estados Unidos. A China é também o maior importador de soja, notadamente do Brasil. O principal investidor no Brasil, no entanto, continua sendo Estados Unidos e países europeus como Espanha, França e Reino Unido, explica o professor. O capital chinês está focado em produtos em que têm competitividade, como energia (70%), construção e carros elétricos.  


Giorgio apresentou, ainda, pesquisa que demonstra o aumento da percepção negativa sobre a China diante da população mundial. “As coisas positivas quase não aparecem.” Para o professor, a China é o país que realizou o sonho brasileiro de superar sua condição periférica. “São muitas diferenças, mas podemos aprender com eles.” 


Nova Rota da Seda

Professora associada do Instituto de Economia Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Isabela Nogueira de Morais falou sobre a Nova Rota da Seda (BRI), estratégia do governo chinês de política externa com objetivos geoeconômicos. Coordenadora do Laboratório de Estudos em Economia Política da China (LabChina), Isabela comentou sobre a transformação de liderança tecnológica e os horizontes possíveis para o Brasil. “Transição hegemônica no mundo que traz impactos e desafios estruturais para países periféricos como o Brasil.” 


Há muita pressão para a entrada do Brasil na Nova Rota da Seda, assinalou Isabela. A China, explica ela, saiu de um padrão de acumulação puxado pelo investimento em ativos fixos, com a integração de um país continental, urbanização, redução de custos de produção com escala e infraestrutura. E passou para um padrão de acumulação puxado por investimentos em inovação. Quer liderar em tecnologias-chave da quarta revolução industrial e onde não há monopólios consolidados, como energias verdes, carros elétricos, inteligência artificial e big data.


“É nesse contexto de mudança que entra a Nova Rota da Seda”, afirma. “Para a China, essa estratégia trouxe aumento efetivo das exportações, exportação de capacidade ociosa e de padrões tecnológicos como 5G e trens de alta velocidade. É uma alternativa a gargalos geopolíticos (rotas de energia), expansão do uso internacional da moeda chinesa, e melhora na imagem internacional com países do sul global.


Para os receptores do investimento direto chinês, os efeitos são de enorme variedade. Há países que assistiram o reforço de sua dependência como o Congo, que perdeu o controle sobre a extração do cobalto para firmas chinesas em troca da infraestrutura para escoamento dessa matéria prima. Ou o Paquistão onde o efeito é mais misto e lento. Ou Indonésia e Grécia, onde houve aumento do espaço de formulação de políticas públicas: um saldo muito positivo. Em 10 anos da Nova Rota da Seda, US$1 trilhão já foram investidos.


Para “surpresa de muitos”, compara Isabela, o Brasil não precisa fazer parte da Nova Rota da Seda para receber os investimentos chineses. “É de longe o país que mais recebe na América Latina. Se a gente olhar no acumulado de 2005 a 2022, o Brasil recebeu cerca de metade desses investimentos na região. E quase três vezes o valor do Peru, segundo colocado. O México, segunda maior economia latino-americana, recebeu apenas 3% dos aportes.” 


Os chineses, no entanto, precisam muito dessa adesão do Brasil, por motivos de poder simbólico, de uma geopolítica que está se afirmando globalmente. “E pressionam enormemente o governo brasileiro para que essa assinatura aconteça.” 


O lugar estratégico do Brasil para os chineses aumentou ao longo dos anos. Conforme os mercados de Estados Unidos e União Europeia se fecham para produtos e investimentos chineses, o Brasil vai se consolidando como um desses destinos que são seguros e amigáveis para a entrada do investimento chinês.


A professora alerta para o risco de dependência e relação centro-periferia para a América Latina, para o Brasil. Seja por conta da exportação de matéria-prima, o lítio para as baterias dos carros elétricos, ou por conta da dependência de padrões tecnológicos estrangeiros. “Qual vai ser nossa capacidade de ter adensamento das cadeias produtivas: o que vai ser efetivamente feito no Brasil, pelo Brasil”, questiona. “E não como meros montadores da tecnologia que vem de fora.” 

 

Ela finaliza classificando a situação atual do Brasil num momento importante de barganha política. “Não precisamos da adesão à Nova Rota da Seda, mas os chineses precisam.”  


A China, a Bahia e o Brasil

Vice-Reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Penildon Silva falou sobre os desafios e as oportunidades dessa relação Bahia-China. O estado recebeu investimento de R$3 bilhões, de acordo com a BYD, a marca chinesa de veículos elétricos que instalou três linhas de produção diferentes dentro de um mesmo complexo fabril, na cidade de Camaçari. É o maior polo industrial da BYD fora da China. 


Ex-secretário de Comunicação de Vitória da Conquista e diretor-geral do Instituto Anísio Teixeira do Estado da Bahia, Penildon abriu sua apresentação com dados de um mundo em mutação, instável, em situação de multipolaridade, no qual aumenta a participação na economia mundial de países como China, Índia e Indonésia e diminui a de Estados Unidos e União Europeia.


“É nesse mundo em mutação que o Brasil tem de observar suas oportunidades, como pode se colocar no sentido de garantir um determinado projeto”, disse, lembrando as mudanças diante do projeto Brics +. “Uma alternativa de desdolarização da economia e intensificação das relações econômicas, como também das relações políticas e geopolíticas. E de uma atuação cada vez mais próxima no âmbito da ONU, das questões internacionais. E o Brasil tem se alinhado de maneira muito forte com essa nova geopolítica que é mais do multilateralismo, da busca de soluções negociadas para os diversos conflitos, de pacificação no âmbito global. A paz é um bom negócio para os Brics, para o Brasil, para a China.” 


O Brasil, lembrou Penildon, passou por um processo de desindustrialização nos últimos anos, de reprimarização da economia, de diminuição percentual da indústria no PIB nacional. “Um Brasil basicamente agroexportador, minério exportador, que acaba se tornando cada vez mais periferia do capitalismo”, criticou. “Antes de pensarmos qual o desafio do Brasil nesse âmbito internacional, temos de pensar qual o nosso projeto de nação.”


E falou sobre as dificuldades impostas pela correlação de forças extremamente adversa, diante do atual Congresso Nacional, parte da sociedade, dos governos e da mídia. “É muito difícil ter um projeto nacional por causa disso. Mas é necessário ter um projeto de nação com uma dimensão econômica, diplomática, industrial, ambiental e cultural.” 


Aos que dizem que o governo Lula é repetição de governos passados, Penildon afirmou: “objetivamente não é”. E ressaltou a importância da Nova Indústria Brasileira (NIB) e sua atuação nas áreas de defesa, transição energética, o Complexo Industrial da Saúde, tecnologia da informação, infraestrutura e cidades. “Isso faz parte do projeto de desenvolvimento nacional. Com novo paradigma de desenvolvimento ambiental, social, econômico e científico-tecnológico.”


O professor reforçou a necessidade de o Brasil deixar de lado o paradigma de ser apenas plataforma de exportação. “Passar a ter um projeto de desenvolvimento soberano implica em ter uma relação com a China com transferência de tecnologias; adensamento das cadeias produtivas locais; compromissos com geração de empregos locais; fortalecimento do capital nacional; preservação ambiental; compromissos de longo prazo no planejamento econômico, social e político.” 


Para ele, o Brasil precisa ter um Estado forte, um setor econômico estatal estratégico. Um país que pode ser a grande potência ambiental do século 21. “O Brasil não pode perpetuar sua situação de neocolônia.” 


A dimensão cultural, educacional, científica e tecnológica são tão importantes quanto a econômica, destacou. Somente o PIB da indústria criativa dos EUA (cinema, audiovisual, TI, revistas e jornais, Internet, Artes) é maior que todo o PIB brasileiro, informou. “A China é o país que mais investe no crescimento de suas indústrias criativas, se torna um grande consumidor de cultura e pode alavancar outras economias.” 


Desindustrialização do Brasil 

Secretário executivo do Ministério de Desenvolvimento Industrial, Inovação, Comércio e Serviços MDIC, Uallace Moreira Lima abriu sua apresentação comentando também o processo de desindustrialização do Brasil. “O país não consegue desenvolver a indústria de bens de capital”, recordou. “O Ministério do Desenvolvimento Agrário busca parceria com os chineses para produção de máquinas de pequeno porte para a agricultura familiar”, exemplificou o professor da Faculdade de Economia da UFBA.   


Em maio do ano passado, o presidente Lula reinstalou o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI). Foram oito meses de diálogo com 20 ministérios, BNDES e 21 representantes da sociedade civil para a construção de uma política industrial. A Nova Indústria Brasil (NIB) foi apresentada em 22 de janeiro deste ano. O programa está vinculado à transformação ecológica e ao novo PAC, o programa de aceleração do crescimento e inclusão social. 


Uallace descreveu as dificuldades do governo federal com as políticas públicas, diante da postura de parte do Congresso Nacional. “Ano passado criamos uma medida provisória para uma política de renovação de frota. Deu quatro meses e não houve designação de comissão, de relator. Perdemos o programa porque não conseguimos aprovar no Congresso”, disse. “Tem de ser uma política de Estado, não de um governo.”  


Assim, o secretário executivo do MDIC relatou o Plano Brasil Mais Produção que tem por objetivo, em quatro anos, promover e financiar a neo-industrialização e a transição ecológica do país. Uma produção mais inovadora e digital: aumentar a inovação e a digitalização da indústria vai impulsionar a competitividade e o desenvolvimento de novos setores. Mais verde, com a descarbonização da indústria para aumentar a contribuição do Brasil no combate à crise climática e gerar empregos de qualidade. Mais exportadora, melhorando a inserção externa da indústria brasileira, com foco no aumento das exportações de maior valor agregado. E mais produtiva, produzindo mais qualidade e redução de custos para a retomada da competitividade da indústria nacional.


“Estamos conversando com empresas chinesas para produção de máquinas e equipamentos de pequeno porte para a agricultura familiar, por exemplo, mas desde que produzam no Brasil”, disse. “Basicamente, para pensar em desenvolvimento, tem de pensar como aprimora para gerar capacidade de inovação interna. E qual o conhecimento da tecnologia, quais os atores presentes. Empresas de origem e propriedade estrangeira, ela não internaliza tecnologia. A não ser que se crie critérios de imposição da internalização.”


O diretor do Instituto Lula, Paulo Okamotto, encerrou o ciclo de eventos lembrando a importância de termos um projeto coletivo enquanto nação. E para garantir isso não podemos esperar que apenas o presidente Lula e seus ministros resolvam essa questão: é um projeto que depende de todos nós. "Portanto, faço o convite para que a gente continue discutindo esses temas estratégicos nas nossas entidades. Porque não acredito em um projeto nacional se não tivermos os trabalhadores defendendo esse projeto coletivo, temos que ter também os empresários e a classe política defendendo esse projeto. Temos que ganhar a sociedade sobre o projeto que a gente quer ter, aí fica mais fácil conversar com a China. E poderemos tirar proveito do que ela pode nos dar e criar uma política de ganha-ganha", concluiu Okamotto. 


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